quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Tragam comida. E livros. (Ou: a lapada de final de ano.)

Eu sei que estamos nos últimos suspiros de 2014 e que eu deveria escrever uma retrospectiva aqui, contando todas as coisas bacanudas e desesperadoras que meu rebento de dois anos e meio sabe fazer, falar e viver. Eu sei, mas vocês também sabem que eu não sou muito seguidora desses protocolos internéticos de escrita de blog, né?
[Aliás, se você ainda me lê e me segue, beijo e obrigada!]
Então eu vou escrever mesmo sobre o dia 18 de dezembro.
Eu, a diva das panelas, a apaixonada por cozinha, a toda-poderosa dos pratos e alimentos, a ironia em pessoa, levei arroz, frango, salada e molho para a escola do Arthur. As coisas foram em potinhos desconexos de outras comidas (tipo o arroz, no pote que era de iogurte e a salada, no pote dos salgadinhos que sobraram de uma festa a que fomos) exalando seu inebriante aroma pelas ruas daqui da vizinhança, encheram o ar na antessala da escola e foram parar nas mãos de uma das mães. A filha dela estuda com o meu filho. E ela teve um bebê.
Outra menina. Loirinha igual à irmã. Mas que acorda de hora em hora, diferente da irmã. Os pais estão no clima de "all joy, no fun" dos primeiros dias, sabem? E foi organizado um rodízio entre as mães da turma do meu pequeno para que a (coitada da) nova mãe de duas não precisasse cozinhar nos primeiros dias com o bebezico.
Gente, eu vou repetir, porque só de pensar nisso eu sinto vontade de sorrir e gargalhar, antecipando o júbilo e o regozijo que deve ser receber tal dádiva generosa. AS PESSOAS COZINHARAM PARA ELA! E entregaram comidinhas gostosinhas (menos eu), prontinhas, saudáveis e maravilhosas para que os pais pudessem focar a energia no que era mesmo importante: as filhas.
Ah, que coisa linda! Fiz o frango com gosto (ou com o máximo de gosto que meu horror à cozinha permite) e fiquei realmente feliz de ter dado um presente útil e maravilhoso desses.
E aí eu fiquei pensando, que se eu tiver um segundinho, um dia, em 2026, não vou fazer chá de fraldas uma pinoia! Vou é fazer um chá de comida. Cada pessoa contribui com o valor de uma quentinha saudável e eu passo um puerpério menos miserável.
Aliás, antes disso eu já tinha pensado em outra alternativa ao chá de fraldas ou chá de bebês: o chá de livros, para montar uma tremenda biblioteca para o pequeno.
E por falar em livros, preciso registrar que ando cortando um dobrado com a questão leituras aqui em casa.
Arthur ama, adora, idolatra livros. Lê todos os dias, sem exceção. Fica entretido sozinho, acompanhado, lê no banho, enquanto come, pede até para ler no carrinho (quando não está fazendo menos vinte, tipo hoje). Acontece que (sempre tem um porém, né?) ele só quer que a gente leia os livros para ele em português. A biblioteca daqui é fabulosa e podemos pegar quantos livros quisermos, praticamente. Então sempre vamos até lá e voltamos com alguns títulos. Todos, óbvio, em inglês. Ao chegarmos em casa com os livrinhos novos, filhote quer ler to-dos e, claro, quer que eu leia para ele em português. Alguns livros têm tradução fácil, com estruturas sintáticas simples e palavras conhecidas. Outros, contudo, são difíceis pacas! Outro dia pegamos um sobre uns caminhões que apostavam corrida em uma cidade dos caminhões (Truckville). Cada caminhão tinha um nome e o livro brincava com o abecedário. Impossível casar a tradução, pois a betoneira não caía na letra B e as aliterações eram irreproduzíveis. Me julguem, mas escondi o livro. Depois desse teve o do trem que apostava corrida com um carro esporte (já viram que veículos que correm é hit aqui em casa, né?). Quinze expressões idiomáticas por página e cada vagão tinha um nome diferente de acordo com a função que exercia. Inventei uma história nova, óbvio. E assim vamos. Hoje Arthur escolheu um livro sobre dinossauros que, como se não bastasse ter aqueles nomes escabrosos que eu só sei por causa do Jurassic Park, é todo em versos. Versos sobre dinossauros. Vão vendo...
Então, tudo isso para dizer que nos vemos em 2015. Que eu desejo tudo de bom para vocês e suas famílias. E quem quiser vir me visitar, por favor traga comida e livros. Em português. Agradecida.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Sobre ser livre

Eu queria pôr a culpa na língua.
"O quê? Isso? Não, não. Não foi isso que eu disse. Vocês se confundiram."
Eu queria poder colocar a culpa na minha incapacidade de dizer não.
"Ah, eu fiquei tão sem-graça de negar, sabe? Ela disse com tanto jeitinho."
Eu queria até culpar Arthur.
"Sabe, foi ele que quis muito, quis tanto, é importante para ele."
Mas a verdade é que fui eu que quis e precisei e desejei e disse sim. Um sim consciente. Tá, de repente não tão consciente assim, porque sempre tem umas surpresas na vida que a gente não prevê nas mirabolâncias do nosso pensamento.
E se alguém pode ser considerado culpado pela presença de Lola nas nossas vidas, esse alguém sou eu!
Lola: peludinha, fofinha, meio vesga, uma porquinha-da-índia. Ela mora na sala de aula do Arthur e não tinha com quem ficar nas férias de inverno. E eu me candidatei ao cargo de guinea pig sitter. Babá de porquinha-da-índia.
Ela veio na gaiola, de carona na mala do carro de uma das mães que tem carro. Eu não tenho carro. Mas agora eu tenho Lola. Que mastiga alface, cenoura, couve, espinafre, maçã e outras gostosuras vegetais. Lola, tímida, arredia e assustada. No fundo da gaiola. Dentro da casinha. Escapando só para comer, beber e ver Arthur. Eles parecem gostar um do outro. Eu que não gostei. Não da Lola, óbvio. Eu não gostei foi do que aprendi com ela aqui.
A gaiola fica aberta quase que o tempo todo. Ela é livre dentro dessa miniprisão chamada apartamento. Pode entrar e sair, pode correr, se esconder, guinchar e até roer os pés dos móveis. Ela pode vir se aninhar no meu colo, ou no do Arthur, ou no do marido. Mas ela não: fica só lá dentro de seu mundinho conhecido, como se aprisionada pelas portas da domesticação. Portas imaginárias, portas irreais que a confinam em um espaço solitário e isolado. Vamos até ela, fazemos-lhe festinhas, no entanto ela fica ali. Recebe o que oferecemos com desconfiança, arredia e assustada. Nunca sai e fica ali, bebendo sua aguinha, comendo suas folhinhas, vendo a vida listrada através das barras da gaiola.
E eu pensei que tem muita Lola na minha vida.
Lolas humanas.
Lolas que culpam portas que não existem de fracassos ou limitações que, exatamente como a minha decisão de ficar com Lola durante as férias de inverno, são fruto das decisões tomadas livre e espontaneamente. As portas imaginárias confinam e a culpa nunca é de quem decide. O cosmos, a vida, o azar, o destino, Deus ou até mesmo outras pessoas, essas filhas da mãe que cruzam o nosso caminho. A pessoa é mero barquinho de papel no tsunami da vida: sem controle, sem arrimo, sem vela ou direção.
Mesmo no inverno, não quero ser uma Lola. Porque o mais triste de ser Lola não é ficar limitada dentro de jaulas imaginárias, nem viver a vida pacata do ócio e do tédio, mas sim não ter consciência de tudo isso. Tomar decisões conscientes, para mim, é a verdadeira liberdade. Não que dê para pensar em todas as possibilidades de fracasso que as escolhas possam acarretar, mas aceitar e não colocar a culpa em outro ou no que vai fora, ah, esse é o segredo. Trazer para si as responsabilidades e liberdades. Eu escolho, eu assumo, eu aguento, eu faço.
Enquanto isso, a portinhola da gaiola está aberta. E Lola ali dentro, os olhos olhando para a ponta do nariz, é um lembrete constante de que é preciso coragem para se viver em liberdade.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

De repente trinta!

Era ali que morava o bebê, na fralda, na linguagem restrita, no sono diurno. O silêncio só vigiado. A brincadeira só acompanhada. Não comia, não se vestia, não corria.
De repente, agora, tenho um senhor de trinta meses.
Ele fala duas línguas. Uma muito bem e outra galopantemente se consolidando. Brinca sozinho, se veste sozinho, come. Come muito. Come coisas verdes, vermelhas, amarelas, azuis, marrons, brancas e roxas. Fica em silêncio, vivendo a infância, mas não mais desafiando os poderes que um corpo movente lhe dá: já sabe correr sem tropeçar, já sabe que dá choque, machuca ou assusta. E não faz. Ainda apronta, claro, é pequeno, é criança, tem muito o que testar. Fico de olho, com alguma liberdade, porém. Desfralda aos poucos, meu menino. Não dorme mais de dia. Não mama mais de dia. À noite, vulnerável pelo sono, entregue às quimeras, em meio ao escuro, ao intenso, ao visceral, ao cru, dorme e volta a ser um bebê: fraldas, fala, seio. Mas aí desperta com a força de mil cavalos, a energia de mil cafés, a alegria de mil de mim e já não tem mais sua indefesa semiconsciência. É sábio: sabe tudo o que precisa para se vestir, correr, pular, falar, comer, agir e reagir. Faz tantas coisas impressionantes, frases tão elaboradas, que me espanta. Tem trinta meses. De repente. Espera mais um pouco, meu menino, ainda falta um tempo para nos separarmos devidamente. Quanto mais ele cresce, mais espaço abre no mundo e no tempo, e quanto mais espaço, mais saudade cabe aqui dentro.

sábado, 6 de dezembro de 2014

Aqui!

Cheguei na escolinha (Arthur está na escolinha agora) e uma das professoras estava agachada, como sempre, se despedindo dos alunos. Mas meus ouvidos tupiniquins dispararam o alarme, porque o que ela dizia não parecia nada com um "bye, see you tomorrow". Nem mesmo soava como o "tchau" que ela aprendeu a falar logo na primeira semana. Nem como o "oi", nem como o "tudo bem", todos ensinamentos do meu filho a ela.
Cheguei mais perto. Mais perto. Ela, baixinho, repetia: aqui, aqui, aqui, treinando pronúncia e entonação, repetindo o que Arthur dizia para uma coleguinha mais adiante, tentando devolver à menininha o papel que ela deixara cair no chão.
Nos despedimos com o "tchau, see you tomorrow" de todo dia e eu fui pensando pelo caminho. Não sei se filhote está aprendendo inglês na escola, mas que está ensinando o português, ah, isso ele está!

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Chulé

Era bem cedinho. Não sei quão cedo, porque de manhã vejo o termômetro, não o relógio. Era de manhã temperatura de -20C de sensação térmica. Era de manhã "filho, deixa a mamãe dormir mais um pouquinho". De manhã pelamordedeusalguémfazumcafébemforte.
Enfiei os chinelos sabe-se como, caí meio de banda no sofá, um olho aberto e o outro dormindo enquanto meu bólido pulava, ria, brincava e me chamava.
- Vem, mamãe. Brincar de carrinho co-mi-go. Vem!
Eu de "tá bom, filho, tô indo", me rastejando quase literalmente até a mesa dos brinquedinhos, sorte a minha que ele adora brincar de engarrafamento, então é tudo bem paradinho, até que ele vira para mim e fala:
- Mamãe, sua boca está com chulé!