quarta-feira, 28 de outubro de 2015

A motivação e outras vacas

Eu era ~jovem~ e decidi virar budista. Acontece que eu tenho minha peculiaridade. Sou um arquivo enciclopédico, com informações descasadas sobre muitas coisas, muitas coisas mesmo. Nada muito profundo, de um modo geral. No entanto, quando eu decido que vou conhecer um tema de verdade, não consigo ler a página da Wikipedia e sair bradando que sou especialista. Ah, não. Sou chata e fico lendo, lendo, pensando, ouvindo e fazendo contrapontos. E um dia percebo que posso não saber tudo sobre determinado assunto, mas pelo menos sei bastante.
Quando decidi virar budista, então, achei que seria uma boa ler e conhecer a filosofia. Conversei com amigos budistas e pedi livros sobre o assunto. Eles me deram.
Não virei budista. Nem li todos os livros. Continuo arranhando apenas a superfície da filosofia.
Mas li um livro. Um livro que tinha uma imagem oculta. Um livro cujo autor explicava que a verdade era como aquela imagem: um borrão desconexo à princípio, coisa que não faz sentido e que nem todo mundo vai gastar um minuto sequer para tentar decifrar/organizar as manchas. Contudo, depois que você enxerga o que está ali, nunca mais consegue "desenxergar" o que viu. E, enfim, ressignifica a imagem, dando a ele uma compreensão mais profunda, um sentido a mais.
Corri para o fim do livro, onde havia as tais manchas com uma imagem oculta. Marido, ainda namorado, estava ao lado e tentou enxergar "a verdade". Ficou heróicos vinte minutos, mas achou mais interessante ir fazer outra coisa. Eu, porém, não conseguia me conformar em não ver a imagem (o livro não trazia uma "resposta" ou "dica"). Passei muito tempo vendo aqueles borrões de tinta. Muito tempo. Mesmo. E então eu vi!

Você vê o que eu vejo?
Lá estava ela, olhando para mim, plácida. Uma vaca. A vaca do ativismo. A vaca da psicanálise. A vaca da compreensão de algo além do óbvio. A vaca da verdade.

Acontece, que a vaca da verdade parece plácida, talvez até amistosa, mimosa. Mas na verdade ela é ardilosa, porque o boi paternalista mora juntinho dela, e se você erra a mira, cai nele. E aí começa a olhar com o olhar bovino para as pessoas que não exergam o que você enxerga, vem aquela vontade de falar "coitadinha dela, não viu a luz, digo, a vaca". E a conexão se perde. E a pessoa vai embora, fazer outra coisa, sem querer desvendar as manchas. E você, cheia das boas intenções, não entende como alguém não enxerga ou decide não procurar enxergar o que você vê.
Durante muito tempo, principalmente com relação ao ativismo pró-parto humanizado, eu fui a chata da vaca. "Ó, tá aqui, não vê? Focinho de episiotomia, olho de GO fofinho, evidências científicas preto-no-branco!" Mas a pessoa queria, sei lá, fazer palavra cruzada ou chupar um Chicabon e seguia dizendo que não havia nada ali para ver. Eu me frustrava tanto!
Então, assim como aconteceu com a vaca do budismo, com a vaca do ativismo, eu conheci a vaca da motivação, que é a vaca mãe de todas as outras vacas. A vaca mãe da motivação me ensinou que pode-se até mostrar a figura manchada para uma pessoa, qualquer pessoa, mas precisa partir dela a motivação e a determinação para procurar novas maneiras de enxergar manchas, imagens, a vida.
E não só isso! A vaca mãe também me ensinou que enxergar a vaca do ativismo ou até mesmo a vaca do budismo faz de mim uma pessoa melhor. Não nos moldes competitivos escrotos de "sou melhor que você ou que fulana porque vi um focinho nesta foto". Mas uma pessoa melhor porque, com a motivação e a determinação, consegui ter mais liberdade e espaço dentro dos assuntos e das situações que me interessam. É como se cada assunto fosse uma casa. Você pode ficar parada onde está e conhecer bem o sofá. Mas tem gente entrando e saindo de cômodos. Quanto mais da casa você conhece, mais livre fica para perambular no espaço, ainda que, por mais esforços que faça, nunca vai dar para conhecer todos os detalhes da casa ("hum, qual a cor da maçaneta da porta do banheiro? quantas tábuas formam o piso? qual o material que recheia as almofadas da poltrona do escritório?").
Sei que a postagem pode soar para vocês uma nova sequência de manchas sem sentido. Mas é a minha vaca. Para mim, faz sentido, dentro do contexto pessoal que estou vivendo, e pode ser que alguém venha enxergar comigo umas vacas por aí: naquela postagem do #primeiroassedio em que de repente faz sentido a naturalização do machismo na nossa sociedade, naquela viagem a Paris em que você descobre ser racista ao se surpreender por ver um negro com mais dinheiro que você, depois de uma cesárea que poderia ter sido evitada, depois que aquela pessoa conta uma história da infância que ressignifica um comportamento. São tantas vacas!
E nesse exercício de tentar enxergar para além do óbvio e do difícil à primeira vista, que a gente consiga enxergar mais de nós mesmos e das pessoas, porque, se você quer saber um segredo, tem mais bicho por aí.

Vão vendo...

domingo, 18 de outubro de 2015

Outono

O outono chegou intenso. O azul doloroso em contraste com o alaranjado ofuscante só não distraem para sempre porque sopra o vento gelado. Sopra e espalha folhas sem fim, folhas eternas, folhas que se espalham, se reúnem, são sopradas e aspiradas, colocadas dentro de latões, sacos de papel imensos.
Outro dia Arthur quis brincar. Ali, no meio de um amontoado espontâneo de folhas. Com as folhas, entre as folhas. Ele era "um caminhão de folhas, mamãe". E chutava, arrastava os pezinhos esparramando aquela montoeira de tons de laranja-acastanhado. Isso foi no meio da calçada. Os prédios criavam um corredor para o vento, que rodopiava as folhas da região e as depositava bem ali, naquele montículo que meu filho escolheu para brincar. Os prédios, no caso, eram comerciais. Os prédios, mais especificamente, tinham, naquele dia, exatamente, uma fila imensa com jovens engravatados. Era um congresso, uma feira de empregos, um evento relacionado à indústria. Não vi o nome direito. Preferi meu "caminhão de folhas, mamãe" e o cochicho de seus pezinhos. Mas vi as pessoas. Todas, sem exceção, usavam preto ou cinza. Todas, sem exceção, não tinham mais de vinte e cinco. Todas, sem exceção, usavam terno e calça. Até as mulheres.
Isso me chocou.
Ou melhor, chocaram-se ali tantas vidas. Como um céu de outubro contra as árvores combalidas e coradas, meu filho, minha força da natureza, meu tom rascante, meu patente regozijo, minha felicidade resplandecente e espontânea contrastava com a anoética e pasteurizada vida adulta recém-alcançada. Constratava ali também meu deslocamento, sem saber se pular em folhas secas é um ato social e culturalmente aceito por aqui ou se era pura rebelião bárbara.
Um taxista saltou para abrir a porta e fazer entrar algum passageiro. Riu. Alto. Ri de volta. Ainda chocada.
Eu me perguntei, mastigando bem aquele clichê, em que outono eu perdi minha criança. Não a minha criança-caminhão, minha criança-revolução bárbara, meu azougue. Mas a criança-eu, que não pensava nos engravatados e nas taillerizadas, que nã perguntava se pular em folhas era bom comportamento. Onde se ressecou, murchou e caiu a risada e a possibilidade de eu mesma ser um caminhão de folhas? Eu sei de alguns veios abertos que cessaram o fluxo da seiva. Sei de um sol mais tórrido que desidratou um ponto. Sei de algumas, mas não de todas as respostas.
E veio o vento. Soprou o cabelo comprido de um engravatado de cinza e gravata lilás, rindo com a despreocupada alegria de chutar folhas do "caminhão". Soprou também mais folhas: as espalhadas para a calçada, as reunidas em espiral. Soprou meu rosto, meu embasbaque. Soprou. Intransitivo. Como o amar.

domingo, 11 de outubro de 2015

Eva!

Era hora do jantar e marido foi para a cozinha preparar seu prato enquanto eu e Arthur ficávamos na sala, já comendo. E então...

PLOFT, PLEM! [bem alto]

E marido:

– MERDA! [bem alto também]

E Arthur, que nunca ouve palavrão porque aqui em casa decidimos não falar na frente dele, vira-se, perplexo:

– Mamãe, quem é Eva?

Eis a corrupção original, só que desta vez protagonizada pelo homem.