sábado, 2 de março de 2019

O parto — parte 4

O quarto ficava em algum andar mais alto, já não me lembro qual, e dava para ver o templo de Bahá'í. Mas isso eu só descobri mais bem mais tarde, quando consegui me levantar da cama. Porque quando cheguei, precisei me deitar.
Eu me acomodei na cama para, em menos de cinco minutos descobrir que passaria 2 dias sem dormir. Mentira. Na hora eu não sabia disso, mas no fim do dia, já.
É que as camas desse hospital têm um sistema de alteração de pontos de pressão para evitar escaras e dores nos pacientes. Por isso, em intervalos regulares e curtos, esteja a cabeceira erguida ou não, a cama se mexia sozinha. No começo foi engraçado é e confortáv. No fim, desesperador! Porque quando eu finalmente encontrava uma boa posição, a cama mudava o ponto de apoio que eu estava usando e eu ficava desconfortável. Ou Gael acordava no meu colo.
Os primeiros momentos neste quarto são um borrão para mim. Não me lembro mais da ordem dos fatos e certamente já esqueci muitos detalhes.
Eu lembro que a primeira ida ao banheiro para fazer xixi foi um pavor. Eu me levantei e parecia que todos os meus órgãos estavam soltos dentro de mim. (E deveriam estar mesmo.) Me senti tonta, fraca, incapaz. Fiz xixi com ajuda da enfermagem, que me ajudou a colocar calcinha descartável, absorvente de 2m de comprimento, saco de gelo e spray anestésico.
Se o parto não teve qualquer intervenção ou medicação, o pós-parto foi uma enxurrada de tudo isso. E esse "tudo isso" teve um impacto significativo em mim.
Quando Gael chegou, veio para meu colo, para o meu peito.
Aqui, o bebê fica, durante todo o tempo que fica internado, de fralda e cueiro apenas. Isso era bom para o contato pele a pele, mas eu fiquei (outra vez) neurótica com a possibilidade de hipotermia. Até porque, em dado momento, mediram a temperatura dele e me pediram para embrulhar bem ele, porque Gael perderá muito calor.
Ficamos nós três ali, pedi comida (o hospital tinha um cardápio de várias páginas! Eu poderia escolher o que eu quisesse do menu, desde mingau de aveia até pizza) e como eu disse, só me lembro de sentir incômodos: as enfermeiras entrando todas as horas, eu ser a responsável por tomar a dose cavalar de analgésicos que me receitaram (e que tomei por medo da amamentação), eu ser a responsável por pedir comida uma hora antes de eu sentir fome (porque o menu era gigante, mas demorava mais de uma hora para chegar o que tivesse sido escolhido), ir ao banheiro e trocar aquele monte de coisas entre minhas pernas, o fato de eu sentir minha musculatura abdominal e pélvica totalmente flácidas e isso me deixar insegura para ir sozinha ao banheiro, para me levantar. Tudo que me lembro do hospital é incômodo.
Arthur veio conhecer o irmão de tarde, depois da escola. Veio, ganhou um lego, ficou todo feliz, todo enciumado, todo amoroso, todo saudoso e foi embora carregando um pedaço do meu coração, deixando um buraco que demorou para cicatrizar.
Não consegui dormir na primeira noite, mas uma hora lá apareceu uma enfermeira perguntando se eu não queria que eles levassem Gael para o berçário e eu quis. Quis porque sabia que precisava descansar e não tinha qualquer rede de apoio para fazer isso depois, em casa. Quis porque estava fraca, vinda de uma gravidez insone e desconfortável. Quis porque eram só duas horinhas, templo que Gael dormia depois de mamar. E essas duas horinhas foram as únicas horinhas que dormi ao longo da minha estada no hospital.
No dia seguinte, quinta-feira, consegui carregar meu celular, tirar fotos, levantar sem achar que iria morrer, mas ainda não conseguia me mexer com Gael no colo e não me sentia segura para andar com ele por aí. Acontece que marido precisou sair por 4h. Tinha umas coisas para resolver. Coisas inadiáveis — mas que hoje eu pediria para ele adiar mesmo assim. Fiquei sozinha. Ninguém veio me visitar. Ninguém me ligou. Ninguém veio conhecer Gael.
As enfermeiras entravam, apertavam meu útero, mediam temperaturas, pressões, valores e iam embora. Eu estava presa à cama que se mexia. Eu era um emaranhado de panos soltos, que me impediam movimentos. Gael, o tempo todo no meu colo. Eu não queria pedir ajuda para as enfermeiras, não sentia abertura na correria impessoal delas. Eu precisava fazer xixi, mas não tinha onde deixar Gael, porque para me levantar alguém tinha de me ajudar, eu não podia me levantar com ele no colo. Estava com fome com sede, cansada. Marido chegou, me salvou, fiz xixi, comi, bebi, ele chegou a ficar 4h com Gael no colo, mas não consegui pregar o olho. A cama se mexia, os hormônios rugiam dentro de mim. Comecei a sentir dor ao amamentar, os mamilos esfolaram.
Eu estava sozinha, vulnerável, a cada 12 horas mudava a equipe e vinham novos rostos apertar meu útero, medir tudo, verificar a icterícia do Gael.
Na sexta nós poderíamos ir para casa. Isso significava um mundo de burocracias. Certidão de nascimento, cadastro do bebê no plano de saúde, avaliações, assinaturas.
Era perto da hora do almoço e eu estava preenchendo o formulário amarelo da certidão de nascimento quando vi tudo rodar. Não foi uma tonturinha, não. O quarto girou, meu lábio empalideceu. Chamamos enfermagem. Mediram tudo, tudo normal. Eu achei que estivesse tendo um treco, um derrame, um ataque cardíaco, uma trombose. Chamaram a neurologista. Perguntei se eu ia morrer. Eu jurava que ia morrer nessa terra gelada, sozinha, sem visitas ao meu recém-nascido tão lindo e grande, ia morrer porque estava fraca, frágil, vulnerável, sem saber onde colocar no formulário amarelo da certidão de nascimento os 4 sobrenomes que Gael carrega.
A médica não respondeu que não. Ela não pode responder isso porque, se eu morrer, ela é processada. Mas a resposta evasiva dela não me ajudou. Reconheci o ataque de ansiedade. Avisei. Fui ignorada. Foram embora. Foram brigar com a cozinha, que ainda não tinha trazido meu almoço. Foram buscar biscoitinhos. Foram anotar no prontuário. Foram.
E o estrago estava feito: exausta, sozinha, vulnerável, responsável pela vida e bem-estar de duas crianças. Eu sentia a pressão de precisar estar bem para criar de tudo, de toda a minha vida que me esperava em casa. Eu estava me sentindo etérea, aérea, um sopro, uma pluma, leve e insustentável. Frágil.
Mas eu não podia ser frágil. Eu precisava ser forte. Inquebrável. Ágil. Destra. Independente. Responsável. Completa.
Mas toda hora vinha um rosto novo apertar meu útero, medir o mensurável, reforçar a fragilidade. Você está bem, mas pode não estar muito em breve. Você gestou e pariu 3,820kg de bebê, mas precisa de ajuda. Não, mais: precisa de vigia. Não uma vigia cuidadosa, amorosa. Uma vigia preocupada, em busca do erro que você vai cometer: deixar o bebê ir para o berçário, não chamar a enfermagem para ajudar, não ligar para a cozinha na hora certa, se esquecer de tomar os analgésicos. Estamos aqui para aguardar o erro. Inexorável e imenso. O erro está aí, basta termos tempo ou técnica para encontrá-lo.

***

A enfermeira obstétrica da clínica que eu frequentava deveria vir me dar alta. Gael estava de alta já há algumas horas. Não perdeu muito peso, icterícia controlada, meu leite já estava descendo e o colostro já não era amarelado, vinha rajado de branco. Gael estava ótimo, lindo, um mamador profissional, conforme atestou a consultora de amamentação que chamei no quarto para ver a pega.
A enfermeira que me daria alta demorou horas.
Eu me debatia entre a insegurança de ir para casa ainda me sentindo muito mal ou ficar no hospital da cama que se mexia e da imensa solidão.
Marido me pressionava para voltarmos para casa: trabalho, Arthur. A vida não parou lá fora. Eu só tinha ganhado mais uma responsabilidade, mais uma fragilidade da qual cuidar.
Eu queria ficar. Tinha medo de ir para casa e acontecer, enfim, o erro.
Eu queria ir embora, para bem longe do protocolo que não me deixava dormir na mesma cama que Gael. Para longe da cama semovente. Queria ver Arthur, abraçar Arthur, amar meu primeiro filho.
Decidi ir embora.
A enfermeira passou lá de noite.
Você sabia que o risco de eclâmpsia não desaparece com o fim da gravidez? Sabia que ela pode se manifestar até 2 semanas depois do parto?
Eu me lembro de estar sentada na recepção do hospital. Uma enfermeira desceu para nos ajudar. Eu fazia muito esforço para entender o que ela dizia. Eu fazia muito esforço para não desmaiar. Eu tinha comido um sanduíche que fiz questão de comprar naquelas máquinas automáticas antes de ir embora. O que me salvou, porque tudo demorou imensamente. Gael estava todo embrulhadinho em muitas camadas dentro da cadeirinha. Lá fora fazia -11°C. O motorista do carro foi simpático. Dei um passo de cada vez para vencer o trajeto entre a rua e a porta do prédio.
Assim que Gael deitou na nossa cama, reconheceu aquilo como seu lar. Eu vi naqueles olhos escuros que ele sabia que era outro ambiente, um ambiente repleto de erros, mas sem alguém para procurá-los incansavelmente 24h por dia. E isso fez toda a diferença. Porque os erros se misturaram aos acertos já naquele exato instante. Os acertos vieram aos poucos, embalaram meu sono. Um sono abraçado ao meu filho recém-nascido. Um sono na cama imóvel. Um sono que consolidou a rotina e fez nascer nossa nova família de quatro pessoas que erram e acertam.