terça-feira, 27 de agosto de 2019

O dia em que eu perdi uma batata

Estou tentando escrever este texto já tem uma semana.
Minha vida está caótica.
Administro uma criança de 7 anos de férias (3 meses), um bebê de 8 meses que coloca tudo na boca e já começou a se deslocar (não engatinha, mas quase), um apartamento com todas as suas necessidades (limpar, cozinhar, guardar, lavar, abastecer...), um casamento, uma carreira a distância (muito mais difícil, já que manter contato de longe é complicado), projetos pessoais e profissionais e, no topo disso, minha sanidade. Minha sanidade precisa de: livros, hobbies, banho, exercício físico e meditação. Minha sanidade precisa de muito, porque além de ser muito exigida, já sei que retomar o prumo é infinitamente pior que manter o eixo.
Pois bem, no meio disso tudo meu bebê começou a comer sólidos. E agora, quando vou ao mercado ou cozinho, preciso ter em mente este novo fato.
Semana passada abri a geladeira e tomei um golpe de ar: não havia nada dentro. Comecei a saga "ida ao mercado".
Lembram que há muito tempo contei como era ir ao mercado com Arthur? (Cata lá nos arquivos, que eu vou ser realista: não vou conseguir colocar o link.) Pois ir ao mercado com Arthur + Gael não ficou exatamente mais fácil.
Primeiro preciso fazer uma lista (de compras), depois outra lista (de coisas que vão na mochila comigo), depois outra lista (roupas que preciso separar para todos aqui se vestirem) e, quando já estou exausta de arrumar tudo e de tentar convencer Arthur a sair de casa, é hora de sair.
Eu saio de carrinho, mas levo o ergobaby porque geralmente Gael chora na volta e eu preciso carregá-lo. Eu saio fazendo mil papagaiadas para distrair Arthur. Eu saio já doida para voltar. E é por isso que, ao pisar no mercado, minha mente está focada em uma e apenas uma coisa :pegar tudo rápido e ir embora o mais rápido possível.
Outro dia marido ficou chocado comigo. Fomos juntos fazer as compras e, enquanto ele pegava uma dúzia de ovos e um potinho de morangos, eu já estava na boca do caixa com absolutamente todos os outros itens da lista + uma barra de chocolate extra. Acho que levei 2 minutos para resolver tudo.
Bom, então semana passada fui ao mercado, determinada a sofrer, digo, passar o menor tempo possível na missão compras. Em poucos minutos tinha resolvido tudo, pegado todos os itens, inclusive uma batata, que viraria um purê para dar para Gael.
Geralmente não compro batata porque 1) Arthur não gosta; 2) dá um trabalho do cão esfregar a casca para limpar a terra (batata aqui vem suja, você que limpe). Mas nesse dia estava determinada a fazer o tal purê.
Cheguei em casa, ainda na vibração purê, comecei a guardar tudo, organizar a cozinha para preparar o jantar e dar sequência à rotina de todos os dias.
Eu não sei vocês, mas eu cozinho assim: corre na sala para ver o bebê, briga com o mais velho porque está apertando o bebê, volta e liga o fogo, vai ver o mais velho pulando do lado do bebê, quebra dois ovos, quase joga os ovos no mais velho ou no bebê, corre para diminuir o fogo e mexer, vai pegar o bebê no colo porque chorou, desliga o fogo para não ter acidente com o bebê no colo e vai lavar louça com uma mão só, briga com o mais velho que não é hora de comer nada antes do jantar, aceita o argumento de que pepino antes do jantar pode, coloca o bebê em frente à porta da cozinha, liga o fogo, grita "outro pepino não!" e se pergunta quando virou essa adulta que grita essas frases sem sentido, tira o livro que estava lendo da boca do bebê, queima o omelete, faz o prato, pega o bebê que chorou, diz "não, chega de pepino" para o mais velho, que também chora, coloca o ergo, coloca o bebê no ergo, consola o mais velho, pede ajuda, descobre que o mais velho pegou os talheres mas parou no meio do caminho para ler revistinha e os talheres estão no chão, pega os talheres, lava os talheres, coloca o prato no micro-ondas, esquece os talheres, grita três vezes antes de ser ouvida pelo mais velho, que largou a revistinha e espalhou 457 cartas de Pokémon no chão, pisa em três cartas e num macarrão velho que não sabe de onde veio, senta, esqueceu o copo de água, volta e o mais velho tá comendo com a mão e o bebê jogou o brócolis no chão... E por aí vai.
Acho que vocês captaram a ideia.
Pois bem, nesse dia eu peguei o raio da batata e comecei a esfregar quando o caos se restabeleceu (não vou falar que ele se instaurou porque pode dar a vocês a ideia errada de que o caos não é o padrão, e sabemos que isso não é verdade). Fui acudir alguma urgência e larguei a batata lá. Que rolou quando peguei o prato para lavar e preparar o jantar. Que rolou de novo quando decidi dar outra coisa para Gael naquele dia porque já estava tarde para preparar o purê. Que se escondeu entre a louça por lavar e, finalmente, se escafedeu.
Não temos triturador de lixo acoplado ao ralo. Marido não se lembra de ter jogado a batata fora. Arthur não mexeu na pia. Eu não guardei batata alguma. Para falar a verdade, só me lembrei dela no dia seguinte, perto do almoço, quando a ideia do purê voltou a me atiçar. Mas aí já era tarde, a batata já se tinha perdido. E, como até hoje eu não sei que fim levou a batata, só posso concluir que, não, ainda não venci! Seguirei na luta diária.

quinta-feira, 8 de agosto de 2019

A ferida

Eu tinha poucos anos, não sei dizer com exatidão, mas foi depois da minhas mortes e antes das minhas vidas. Eu usava um triciclo e corria feliz, naquele clichê de infância com vento no cabelo e despreocupação. Fui fazer uma curva e caí. Rolei. Parei na parte de areia antes da água e levantei já sentindo o cotovelo arder.
Não lembro se chorei. Nem como voltei para casa. 
À casa, que não era minha porque depois das minhas mortes eu não tive mais nada, limpei como tinham me ensinado: água, sabão e álcool. Queria pôr um curativo, porque cotovelo costuma chegar primeiro a muitos lugares — mesa, roupa, pessoa ao lado, colchão —, mas se sobrepuseram a casa que não era minha, sem minha gente, e a história perversa que se disseminou na minha infância de que eu não doía. Por isso, fiquei sem curativo, à mercê da cicatrização natural para diminuir minha dor.
Todos os dias eu passava água oxigenada, para não causar infeção. E seguia de perto a transformação de carne viva, rósea e dorida em crosta. No começo eram raios avermelhados. Depois de alguns dias escureceram, adensaram e ao fim mudaram para uma casca marrom e grossa. 
Ainda doía, só que de um jeito diferente.
Tive muito cuidado ali naquele lugar. Era sozinha e uma inflamação era arriscado.
Fui evitando raspar o cotovelo no cotidiano, segui os rituais de cura que pareceram lógicos e que doeram menos e em algum tempo caiu a casca e ficou uma cicatriz. Está aqui até hoje. 
*
Sozinha, naquele quarto de hospital, nasceu  em mim uma outra ferida. 
Ninguém veio ver Gael. Nem a mim. Rostos estranhos entravam, saíam e nunca voltavam. Eu era um número, um protocolo, um prontuário.
Nenhum amigo ligou. Nem mandou flores. Ou presentes. Ninguém correu para ver o ascendente ou fazer o mapa astral do Gael.
Eu contei que estava passando por um mau momento, que foi um parto intenso, mas as pessoas seguiram em conversas paralelas. Ninguém fez chamada de vídeo. Ou mandou comida para minha casa. Ninguém fez um texto bonito para o meu filho. Tão perfeito. Tão incrível.
Ele nasceu e tudo roçava nessa solidão horrorosa e doloridíssima.
De novo eu não estava em casa. As pessoas seguem descrendo de minha dor. Não houve curativo e há oito meses venho acompanhando com cuidado e interesse a ferida. Todos os dias passo unguentos e em alguns poucos dias tentei usar lágrimas. Parece que tem um ponto que está inflamado, mas sem pus ninguém me leva a sério. A distância também não ajuda: já tentou enxergar estando longe em cerca doze horas de voo? Tudo vira ficção. Você imagina tanto, completa muitas lacunas, tantas, aliás, que tem mais das coisas imaginadas que das experimentadas ou testemunhadas.
Todos os dias doem e sigo sozinha. Não vejo ainda estrias avermelhadas em meio à carne viva. Todos os dias eu busco a cura, a cicatrização. Mas a ferida está em área que chega antes em qualquer lugar.