domingo, 24 de fevereiro de 2013

Por que ter uma enfermeira obstétrica

Quando a porta se abriu, a sensação que tive foi que a desconstrução começara ali.
Eu vinha crescendo, junto com minha barriga, ideias e vontades em relação a meu parto. Mas sabia que corria o risco sério, seríssimo de querer que a ideia sobrepujasse a realidade, e essa, meus caros, é a fórmula mais certeira para a frustração. Assim sendo, eu tinha certeza de que precisava começar a desconstruir algumas coisas dentro de mim para poder fazer nascer. Isso, em grande parte, porque todo nascimento é também uma espécie de morte. Morte na entrega ao desconhecido, morte social (fazemos a passagem de filhas a mães), morte da gravidez e do casal (agora seremos três ou mais!).
Então, quando ela abriu aquela porta e minha enfermeira - a quem eu imaginara como alguém mais ou menos da minha altura, de cabelos lisos e compridos presos num rabo-de-cavalo prático e quase desleixado, camiseta larga e calça de linho - surgiu no explendor de seus cabelos curtos, tatuagens grandes e coloridas (e bem visíveis) e presença física muito forte (ela ESTAVA ali, ela SE MOVIA, ela PARAVA, tudo sem qualquer espaço para dúvidas), eu sabia que as coisas dariam certo.
Quero dizer: eu sabia que eu tinha um caminho a trilhar e sabia que muita coisa precisava de ajuste, de reflexão, de aprendizado. Mas ali eu tinha algo em que me fiar.
Bem que a obstetra avisara: há mulheres que criam vínculos mais intensos com a enfermeira obstétrica do que comigo. Não foi assim logo de cara, confesso. Ter a imagem mental que eu desenhara sobre como seria aquela pessoa pulverizada por aquela presença me fez pensar se eu seria capaz de criar vínculo com alguém diferente. Não diferente de mim. Mas diferente das expectativas que eu havia criado.
Eu não sabia, porém aceitei a porta aberta e entrei.
Ali dentro, naquele apartamento com algumas coisas diferentes (uns corações flamejantes nas paredes, umas caveiras, a coluna espinhal num molde em tamanho natural feito de gesso, dois gatos, uma atmosfera meio bruxonesca), ali eu encontrei a pessoa mais sensível que já conheci na vida. E sensível aqui não é sinônimo para "docinha", "fofinha" ou qualquer outro adjetivo que geralmente atribuímos ao lado pejorativo da sensibilidade. Quando eu falo de sensibilidade, quero dizer que aquela pessoa extremamente forte, presente, segura e firme estava tomando muito, muito, muito cuidado com meus sentimentos. Ela sabia até onde poderia ir. Sempre. E eu senti isso desde o começo. Não que ela tenha feito algo específico, mas a gente sabe quando a outra pessoa está se importando de verdade com o que sentimos e pensamos.
E foi aí que ela me arrebatou.
Hoje, olhando para trás, vejo a importância que minha enfermeira teve em minha gravidez, no nosso parto e no meu pós-parto. É difícil ser grávida e mãe hoje em dia, na sociedade em que vivemos. Não estamos preparadas para a solidão que nos atropela, para a força selvagem que nos arrebata, para a sexualidade, para nosso corpo (transformando-se, duplicando-se, abrindo-se, rompendo tabus), para nossa sensibilidade. Que conveniente que minha enfermeira, no momento mais delicado, fosse sensível e soubesse, só de olhar para mim, quando eu precisava de um empurrãozinho, quando eu precisava de um abraço, aonde ela deveria mandar as palavras. Também foi de uma conveniência ímpar que minha enfermeira entendesse do corpo: por dentro (ossos, músculos, formação acadêmica, meandros da mente grávida e feminina) e por fora (posturas, gestos, cores, ritmos). E, certamente, foi a coisa mais conveniente do universo todinho ter a meu lado uma pessoa capacitada para auscultar Arthur durante o trabalho de parto, para tomar para si a tarefa de controlar o progresso do processo fisiológico do parto, para coordenar com a médica esquemas, horários, medidas e burocracias. Sua sensibilidade me permitiu fugir do controle. Fugir mesmo: eu queria mergulhar em minhas contrações porque eu sabia que era minha única chance de parir. Se eu me mantivesse racional, poderia pôr tudo a perder, e era minha única chance de parir, porque cada chance que temos é única. Então, arrumei minhas malas e parti da vida controladora e racional rumo ao louco mundo do sentir e pulsar e contrair e dilatar e, sobretudo, não querer saber quanto de dilatação e nem como ou quando iriam chamar minha médica.
Foi assim que eu pari. Ela que abriu a porta, praticamente depois de um jeté, quando o refletor da sala de parto queimou e Arthur coroou no escuro, chorando. Foi ela que esteve comigo antes, durante e depois. Foi quem me contrabandeou frutas secas e nozes quando a maternidade me negou o almoço imediatamente após o parto (e assim, ela salvou minha energia, que andava em baixa depois de uma madrugada inteirinha sem comer ou dormir). Foi quem me salvou do empedramento na apojadura, das fissuras na pega errada, do baby blues. Eu ligava para ela chorosa, porque os hormônios estavam loucos, e ela veio com flores no dia do meu aniversário! Ela não se esqueceu! Também foi ela a responsável por me apresentar a mães muito especiais, que mudaram radicalmente minha maternagem e minha alegria de viver este momento, pessoas doces e fortes e lindas que me ensinam muitíssimo e que sabem. É ainda ela que pensa na minha monília recorrente e dá dicas especiais. Ela que pergunta e se interessa de verdade, porque ama. E se só damos o que temos, essa moça é toda amor.
Por tudo isso (e outras coisas muito mais subjetivas e delicadas), eu acho que toda mulher deveria ter em seu parto a benesse de uma enfermeira obstétrica competente e sensível. E por tudo isso, e pelo privilégio incrível de saber que meu filho poderá perguntar a mim sobre a equipe que o ajudou nascer e ter como resposta nomes, histórias e rostos (e não somente um relato com profissões - médicos e enfermeiras), eu digo: obrigada, minha querida. Você fez e faz minha nova vida especialmente maravilhosa!

Um comentário:

  1. AHhhhh Nat, que lindo! lindo, lindo, lindo!
    A questão do nosso auto controle tem passado muito na minha cabeça, talvez por conta do Odent e estou com diversas perguntas para a EO e obstetra. Realmente essa equipe é impar, não é a toa que eu me sinto mais forte a cada encontro, mas confiante.
    bjus!
    ps. o que é empedramento na apojadura?

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