domingo, 18 de outubro de 2015

Outono

O outono chegou intenso. O azul doloroso em contraste com o alaranjado ofuscante só não distraem para sempre porque sopra o vento gelado. Sopra e espalha folhas sem fim, folhas eternas, folhas que se espalham, se reúnem, são sopradas e aspiradas, colocadas dentro de latões, sacos de papel imensos.
Outro dia Arthur quis brincar. Ali, no meio de um amontoado espontâneo de folhas. Com as folhas, entre as folhas. Ele era "um caminhão de folhas, mamãe". E chutava, arrastava os pezinhos esparramando aquela montoeira de tons de laranja-acastanhado. Isso foi no meio da calçada. Os prédios criavam um corredor para o vento, que rodopiava as folhas da região e as depositava bem ali, naquele montículo que meu filho escolheu para brincar. Os prédios, no caso, eram comerciais. Os prédios, mais especificamente, tinham, naquele dia, exatamente, uma fila imensa com jovens engravatados. Era um congresso, uma feira de empregos, um evento relacionado à indústria. Não vi o nome direito. Preferi meu "caminhão de folhas, mamãe" e o cochicho de seus pezinhos. Mas vi as pessoas. Todas, sem exceção, usavam preto ou cinza. Todas, sem exceção, não tinham mais de vinte e cinco. Todas, sem exceção, usavam terno e calça. Até as mulheres.
Isso me chocou.
Ou melhor, chocaram-se ali tantas vidas. Como um céu de outubro contra as árvores combalidas e coradas, meu filho, minha força da natureza, meu tom rascante, meu patente regozijo, minha felicidade resplandecente e espontânea contrastava com a anoética e pasteurizada vida adulta recém-alcançada. Constratava ali também meu deslocamento, sem saber se pular em folhas secas é um ato social e culturalmente aceito por aqui ou se era pura rebelião bárbara.
Um taxista saltou para abrir a porta e fazer entrar algum passageiro. Riu. Alto. Ri de volta. Ainda chocada.
Eu me perguntei, mastigando bem aquele clichê, em que outono eu perdi minha criança. Não a minha criança-caminhão, minha criança-revolução bárbara, meu azougue. Mas a criança-eu, que não pensava nos engravatados e nas taillerizadas, que nã perguntava se pular em folhas era bom comportamento. Onde se ressecou, murchou e caiu a risada e a possibilidade de eu mesma ser um caminhão de folhas? Eu sei de alguns veios abertos que cessaram o fluxo da seiva. Sei de um sol mais tórrido que desidratou um ponto. Sei de algumas, mas não de todas as respostas.
E veio o vento. Soprou o cabelo comprido de um engravatado de cinza e gravata lilás, rindo com a despreocupada alegria de chutar folhas do "caminhão". Soprou também mais folhas: as espalhadas para a calçada, as reunidas em espiral. Soprou meu rosto, meu embasbaque. Soprou. Intransitivo. Como o amar.

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