sábado, 21 de setembro de 2013

Nossos filhos, esses estranhos

Eu me lembro até hoje: veio na agenda da creche "Arthur disse a palavra 'bola' diversas vezes hoje." E foi assim que eu fiquei sabendo da primeira palavra do meu bebê. Muito triste, achei.
Essa coisa de deixar em creche sempre me deixou deprimida. Ainda grávida, sofria antecipadamente ao pensar que chegaria o dia em que deixaria meu filhotinho, gestado e parido com tanto amor, acalentado com tantas mamadas e atenções, na creche, aos cuidados de pessoas estranhas, que certamente não teriam o mesmo amor que eu tenho por ele. Sofria. Sofri. Muito.
Daí, tive a oportunidade de ouro de largar carreira, dinheiro e canudo, e ir cuidar do meu molecote, sozinha, no conforto do meu lar, 24h por dia, sete dias na semana, inclusive sábados, domingos, feriados e dias de doença e convalescença. Oportunidade de ouro, eu sei, tenho consciência dela a cada diazinho que acordo e não preciso me arrumar para ir ao trabalho, só ao parquinho; a cada tarde que curto meu bebezinho grudado a mim, aprendendo as coisas do mundo, da vida e sobre mim bem diante dos meus olhos. Eu sei. Mas não é porque eu sei da minha sorte que eu não sinta cansaço, que eu não fique estressada e até mesmo frustrada de vez em quando. Quem cuida de um bebê em tempo integral sabe do que estou falando, e é óbvio que essa foi minha escolha consciente, livre e deliberada: aceitei seus bônus e seus ônus, e acho que, sim, fiz muito bem a mim, a ele, à família.
Então, hoje, quero falar um pouco sobre o cansaço e a frustração de ser mãe integral, sobretudo depois de ter sido mãe proletária com CLT.
Quando eu trabalhava nove horas num escritório, sentada numa mesa toda minha, com prazos e projetos que dependiam de mim e somente de mim para irem adiante, eu me sentia frustrada e estressada. Cansei de sonhar acordada no meio do expediente, pensando no programa de fim de semana que iria fazer, antecipando o momento em que meu filho deitaria os olhos em mim, jogaria os bracinhos para o alto e viria diretamente ser acarinhado em meu seio. No mundo cor-de-rosa dos que estão infelizes com a realidade em que vivem (eu amava meu trabalho, claro, mas havia uma confluência de fatores intra e extra-empresariais que me despertavam outras ambições), mudar a realidade significa viver em um paraíso cristão: sem dores, sem sofrimento, com alguma culpa. Acontece, minha gente, que aqui na Terra, ao menos até onde me conste, tal paraíso não existe, e é por isso que o nosso livre-arbítrio é tão fundamental para sermos felizes. Não vou me alongar muito nesse quesito porque todo mundo sabe disso e eu não estou aqui para escrever um post de auto-ajuda alheia (auto-ajuda própria, sim, certamente!). Vamos então só passar adiante, e eu conto para vocês que, mesmo sabendo que eu estava idealizando a maternagem em tempo integral, eu achava que não haveria frustrações e estresses do mesmo nível de intensidade que eu vivia na panela de pressão social chamada "dupla jornada feminina": mãe-e-proletária-CLT.
Mais uma cuspidela para o alto, né? O que me faz questionar o gênero de Murphy: será mesmo um homem? Porque está com cara mesmo é de mulher, que entende do babado de se lascar na vida, então, por isso, cumpre seu papel com maestria.
Digressei, eu sei. Volto.
Bom, então, estava eu, com meu filho que dizia "bola", agora vivendo o Eldorado das attached mommies, em casa em tempo integral, levando ao parquinho, à biblioteca, ao ginásio de atividades, vendo de perto ele enfiar mãos cheias de areia nojenta na boca, assistindo ele descer às gargalhadas o escorrega, ficando apavorada quando ele se estabacava de cara no concreto (abriu o lábio duas vezes, o safado!), quase até adivinhando qual brinquedinho babado que ele enfiara na boca havia causado a gripe que ele pegou, quando eu me dei conta de uma coisa muito, mas muito, muito, muito importante. Meu filho, naquele momento, era quase um estranho para mim.
Quando ele saiu de dentro de mim, berrando, escorregadio, macio e quente, ele era um estranho completo. Não reconheci nele nada: suas feições eram novas, seu choro nunca fora ouvido, suas expressões, manias ou seus trejeitos eram todos inéditos. Até mesmo espirros e bocejos eram surpreendentemente ímpares. Quem pariu sabe (e quem teve o bebê por cirurgia ou adotou, também, é claro!). É uma delícia ir descobrindo e conhecendo nosso bebê, e talvez porque você está ali, num processo íntimo, delicado e sensível, de mútuo conhecimento (no caso do bebê, muita coisa de reconhecimento acontece), é que irritem tantos os pitacos: mexe com a nossa insegurança normal de mães recém-nascidas, que não sabe NADA sobre o próprio filho. E não sabe nada, mesmo que tenha feito mil cursos, quinze ultras 4D por mês, mesmo que tenha dezenove filhos mais velhos. Esse bebê que acabou de sair da sua barriga é inteiramente novo e uma incógnita absoluta.
Bom, daí você fica no chamego ocitocínico dos primeiros dias, depois se apaixona por cada pedacinho daquela pessoinha nova (até pedacinhos fedorentinhos), curte, ama, se doa, se dói, se entrega e, enfim, depois de uns três meses, você finalmente está apta a dizer que conhece seu filhote. Se chora assim, é sono; se come a mão assado, é fome; cocô mole, dente; risada de banda, fez xixi; agitou as mãozinhas, chega de balanço; os pezinhos não param, está ansioso. E por aí vai. O processo às vezes vai mais rápido, às vezes, mais devagar, mas, geralmente, quando terminam os três primeiros meses a mulher que nasceu mãe já sabe alguma coisa do bebê que nasceu...bem, bebê.
Porém, no injusto mundo das mãe-proletárias-CLT, é logo depois desse período e desse processo tão importantes e complexos que elas são obrigadas a delegarem os cuidados dos pequenos seres a pessoas que, tendo laços de sangue, de amizade ou monetários, passarão a anotar ou informar sobre o que acontece com seus pequenos durante o período em que mãe e filho(s) estão afastados. É cruel. Há quem não ache e goste de voltar ao mercado de trabalho, quem sinta até certo alívio por ter interações sociais que não versem sobre filhos e maternidade. Essas mulheres estão felizes com sua escolha. Mas eu não estava, lembram? Então esse post vai um pouco enviesado: sob o ângulo da frustração de um dia, em casa, ao abrir a agenda da creche, ler que meu filho falou "bola". (E frustração enorme, para mim: ele chegava em casa dormindo já, então nem dava para pedir que ele repetisse a gracinha!)
Frustrada, criei um mundo idealmente maravilhoso, em que eu acordava, dava bom dia para marido, filho e flores do jardim, ia preparar café da manhã, comia, brincava com o pequeno, dava até logo para marido, passeava pela cidade, comprava morangos frescos, sentia a brisa bater nos cabelos, ensinava para filhote os nomes de todas as coisas do mundo, sorria, vivia leve como uma pluma. Claro que eu precisaria fazer xixi com ele no colo, comer rapidinho, de repente interromper um programa bacana porque Arthur não estaria muito contente naquele momento, com sono, fome ou algum outro incômodo. E com essa visão foi que eu me demiti.
E foi com essa mesma visão que, ao chegar aqui, nos EUA, eu notei uma coisa muito importante: Arthur, depois de tanto tempo na creche, era um estranho para mim. De novo. Eu não sabia suas músicas favoritas, não conseguia criar uma rotina para nós, não sabia muito bem o que ele comia, o que não comia, o que gostava de fazer, como ele brincava. E isso foi um baque, porque com um bebê de 1 ano você acha que já sabe alguma coisa, né?
Pois é, mas eu tinha muitas coisas para reaprender: horários, ritmos, sinais, hábitos, choros e necessidades.
E eu sofri. Fiquei estressada, com um bebê super-ativo em casa, que tinha energia para dar e vender, energia essa que eu não sabia para onde canalizar. Também tinha um bebê com gostos e paladares que eu precisava descobrir e perceber. E, muitas vezes, ele me fazia gestos que não compreendi: devia ser alguma coisa da creche que vinha à tona e que lá ele se fazia entender. Precisei lidar com essa frustração de ter um pequeno estranho em meus braços, que muitas vezes se frustrava em mim, com minha ignorância sobre sua vida, rotina e preferências. (E olha que, modéstia a parte, eu era uma mãe interessada e dedicada quando não estava no trabalho.)
Enfim, além de tudo isso, acho que é importantíssimo também falar de uma frustração imensa e sobre a qual não pensei muito bem quando fantasiei sobre maternagem 24h por dia: a frustração do tempo. Nos meus delírios pré-demissionais eu faria xixi com Arthur no colo e teria algumas restrições em termos temporais, claro. Mas o impacto foi muito profundo para mim. 
Quando Arthur era pequenininho, um recém-nascido, eu não tinha tempo para nada: xixi, comer, tomar banho, escovar dentes. NADA. Passava o dia em função do meu bebê e das novas funções que ele havia criado: mais roupas para lavar e arrumar, comidinhas para mim, organização da casa e do espaço habitável etc. Então, depois de quatro meses e meio de licença-maternidade, voltei a trabalhar, e passei a ter uma hora inteirinha de almoço, o que me dava espaço na agenda para atividades como bater perna no shopping, fazer unhas, depilação, ir ao supermercado, sentar-me sozinha e pensar na vida, ler um livro... As possibilidades eram muitas e eu as aproveitei bastante! Curti ter um tempinho para mim novamente. Daí, quando voltei a ser mamãe em tempo integral, afundei na falta de rotina, desesperei no infindável mundo de atividades inadiáveis, fui soterrada por 40 unhas a mais para cortar, dois pés a mais para calçar, dez dentes a mais para escovar, um estômago para alimentar, uma cabeça para lavar, entretenimento, cuidados pessoais, necessidades básicas e imediatas (fome, sono, frio, calor), tudo dele primeiro, muitas vezes tudo dele exclusivamente, porque não havia (não há) tempo para mim. Fico dias sem lavar o cabelo, horas sem escovar os dentes, durmo mal, sempre tenho algo a fazer e nunca consigo realmente relaxar ou descansar, pois Arthur está realmente encantado por ter a mamãe em tempo integral e absoluto com ele, e me quer praticamente de sol a sol. E com isso, confesso, me frustrei, porque meu tempo não é mais meu. Por isso, demorei para encontrar o prazer de ser mãe integral - admito, sem orgulho. Demorei para sorrir com a alma em paz, sem a angústia da necessária (é claro) frivolidade apertando minha garganta num sufoco de minutos contados: preciso tomar banho; estou com fome; preciso dormir; queria ficar quieta agora; puxa, que livro bacana; nossa, minha perna está cabeluda!
Demorei para chegar a conclusão de que meu estresse e minhas frustrações de mãe em tempo integral podem até ter um grau intenso, como os estresses e frustrações de mãe-proletária-CLT que fui. Mas, por serem de naturezas diferentes, essas coisas precisam ter um impacto diferente. E, sobretudo, porque eu ESCOLHI estar onde estou hoje, o lado B da maternagem intensa deve ser encarado como desafio e oportunidade, e não como castigo e pesar.
Então, agora, mesmo com perna cabeluda (outro dia, no meio da ioga, a professora veio ajeitar minha postura e quase morri de vergonha porque quase dava para fazer trancinhas nos cabelos da minha perna!), mesmo estressada quando estou sozinha em casa, querendo comer e Arthur cisma em subir na mesa ou escalar a estante, quando ele chora, se joga, quando o cocô vaza na última roupa limpa e eu preciso descer com bebê, roupa, sabão em pó, moedinhas e paciência até a lavanderia, mesmo assim eu ainda sorrio ao ver meu filho, na minha frente, aprender a imitar um cavalinho (é a coisa mais LINDA DO MUNDO!).
E aí, no meio dessa confusão intensa e louca, no meio de todos esses pensamentos, dessas novas sensações, eu fiz uma descoberta incrível, talvez o grande segredo da maternagem para mim. Por mais perto que estejamos, por mais que acompanhemos cada crescimento, cada aprendizado, por mais que estejamos presentes em cada descoberta, nossos filhos são e sempre serão aqueles estranhos que parimos, porque nossos filhos vivem e experimentam e aprendem e vivem na individualidade. São, portanto, seres únicos, que apreenderão o mundo de maneira única. E a cada vivência e novidade, mudarão, se transformarão. Nosso papel, então, é estar presente, como quisermos ou pudermos, para, com todos esses aprendizados e transformações, sermos a constância de que eles precisam para poderem voltar, sempre que quiserem, à segurança imutável do amor materno. Só a solidez do amor permanece quando o assunto é filhos, esses estranhos.

(Pode não parecer, mas este post é fruto de muitas reflexões em relação ao post anterior. Obrigada a todas que me responderam! De coração. Gente que nunca tinha comentado, gente que sempre comenta, gente que voltou a comentar. Obrigadíssima por partilharem opiniões e sentimentos. Isso é o que realmente importa nas redes maternas: trocas e acolhimento. Prometo voltar para falar sobre minhas ideias a respeito de segundar.)

4 comentários:

  1. Eu vivi isso, de olhar meu filho e não saber quem ele era. Isso porque no meu lindo mundo azul de bolinhas brancas, eu pensava que ia conhecer ele de cima a baixo, e dos lados também. Achei que cada choro eu ia conhecer, isso desde o primeiro dia de vida fora do forninho dele.
    Que nada. Te juro, não me bata, mas tinha vez que ele chorava que eu tinha vontade de sumir, porque eu simplesmente não sabia o motivo, e eu me sentia uma merda de mãe por não saber o motivo! Como assim, eu gestei ele por longas 37 semanas e não conheço ele? que bosta de mãe esse anjo ganhou. Sim, eu era implacável nas minhas cobranças.
    Hoje em dia sim, conheço muito meu João, mas sei que a cada dia ele se descobre, se redescobre e eu volto a estaca zero... conhecer ele de novo.

    Quanto a ficar em casa, a poucos dias isso era um problema na minha cabeça. Não estou rasgando dinheiro, mas estou numa situação confortável que me permite ficar em casa com ele. Mas eu sinto falta de trabalhar. E me culpava por isso. Ser mãe é sentir culpa né? O que me fez ficar em casa foi pensar justamente isso que tu mencionou... outra pessoa vivendo o que eu poderia estar vivendo, escutando palavras novas, sorrisos novos... isso me doeu. Sei que um dia vou ter que trabalhar, sei que um dia vou ter que soltar ele no mundo, mas decidi que enquanto der vou ficar aqui com ele, grudadinha. Mas não é nada fácil a vida de mãe em tempo integral e dona de casa. Eu sempre fico de lado. Com as pernas quase tão peludas quanto primo IT!

    Uau, escrevi muito, desculpa o jornal ai!

    Beijo

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  2. Eu fico em casa com duas crianças e experimento diariamente (ainda)a coisa do: queria ficar quieta agora rss. Ao mesmo tempo é sensacional ver as descobertas deles, porque são sim estranhos desbravando o mundo.

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  3. Como é complicada essa coisa do trabalhar e ter filhos. Eu sempre trabalhei e tinha claro na minha cabeça que quando tivesse filho ele iria para a escola/creche/berçário desde cedo, afinal, eu e meus irmãos fomos e sobrevivemos! Mas a maternidade é um eterno cuspir pra cima e cair na testa, quando o Joaquim nasceu perdi a coragem de deixa-lo para trás, voltei depois de 4 meses e 20 dias e acabei sendo demitida, o que veio a calhar com as minhas vontades. Adoro ficar com ele, cuidar dele, acompanhar o desenvolvimento, mas já perdi a conta de quantas vezes me senti incompleta, insatisfeita. A situação financeira esta "tranquila" pois o maridão dá conta, mas sempre bate aquela insegurança dele ser demitido, afinal, iniciativa privada é uma caixinha de surpresas, e como eu trabalhava na mesma empresa e fui demitida, porque ele também não seria, né?!?! Costumo dizer que as vezes preciso em encontrar em meio a fraldas sujas, mamadeiras e uma casa bagunçada. Como a Cacau falou, uma hora vamos ter que larga-los no mundo. Mas não agora né? Eles são tão pequenos, tão dependentes e as coisas passam tão rápido que dá até medo. Tenho uma amiga que abdicou de 5 anos de vida profissional para curtir a filha, ela não se arrepende, na verdade teria encurtado um pouco mais o tempo, mas para ela foi muito difícil deixar a filha em uma escola, já que morava ao lado de uma e cansou de ver as crianças sendo mal tratadas...Me encontro numa encruzilhada, pois quero ter outro filho e não rola voltar " a ativa" para sair de novo, acho que isso seria pior do que ficar anos fora do mercado. Por enquanto estou estudando para concursos na minha área, se passar é claro que eu volto, mas enquanto isso não acontece, vou curtindo a cria, fazendo uns freelas e sonhando com o dia da volta!!!

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  4. Uau, que post profundo, que bela reflexão, que linda auto análise. Não que você queira conselhos, pois, cada uma encontra a saída a seu modo, mas vou lhe dizer duas coisas: 1) aos poucos, tudo se encaixa; 2) quando ele estiver falando, tudo fica mais fácil. Por aqui, foi assim! Tanto que tive fôlego para partir para o 2º round, engravidando de novo :) Beijão

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