sexta-feira, 12 de abril de 2013

Carta para minha GO (Feliz dia do obstetra!)

Sabe quando você lê uma coisa e pensa "que ideia genial, queria ter tido essa sacada!"? Então, Anne Rammi, essa moça com nome que rima, e que boxa, rema, pinta e milita (e mora no meu coração, embora nem saiba quem sou!), essa moça fez assim comigo hoje.
Eu aqui, quietinha, vivendo meu mundinho de aniversários de relacionamento, idas para Chicago, bebê-delícia me deliciando, e ela veio e PAF! Levou embora meu rebolado num post lindo, que só não me fez realmente querer ter sido a autora porque não se trata de um nascimento bonito, e isso exclusivamente porque ELA foi desrespeitada no momento mais sublime de sua vida. (Desperta uma fúria solidária em mim saber que outra mulher, com outra história, não teve a alegria que eu pude ter.)
Solapada e desnorteada (sim, eu tinha preparado um post bobinho mesmo, todo água com açúcar, tipo beste-seller de aeroporto, sabem? Foi para o lixo. Deu vergoinha.), achei que eu queria ter tido essa ideia genial de escrever uma carta para minha GO no dia do obstetra, e assim militar um bocadinho, coisa que, de uns tempos para cá, foi eclipsada pelo meu umbigo e suas mudanças (Chicago) e permanências (marido).
Então, inspirada pela moça que eu tanto admiro, também fiz minha cartinha. Homenagem a minha querida obstetra.

Querida Dra. F.,

Não vou expor seu nome porque seria injusto ficar no mocó e sair bradando aos quatro ventos sua identidade. Na verdade, porém, eu deveria. Eu deveria para que todas as mulheres cariocas que realmente querem um parto digno, um parto seguro, um parto saudável, um parto fisiológico, sem intervenções e terrorismo, sem traumas, com respeito e muito, muito amor encontrassem a grande parceira que você foi para minha família.
Nossa relação foi de construção e parceria. Sempre. Eu cheguei colocando as cartas na mesa (timidamente): três exames de BHCG, um medo danado (e infundado) de abortar, 40kg, um histórico de "nãos" (não vai engravidar naturalmente, não vai ter passagem, não vai ter saúde para nutrir seu bebê, não vai conseguir parto normal sendo tão pequena etc.) e toda minha ansiedade. E você devolveu o que não deveria ser gestado ali, entre mim e você, bem em cima do meu bebê. Meu bebê, você já sabia, não merecia sobre ele o peso que às vezes lhe atribuía. Às vezes eu era os 40kg mais pesados que existiam. E você soube mostrar o caminho. E me receitou todos os anti-histamínicos permitidos para me ajudar a lidar com a fobia que tenho de vômito. Não vomitei nem uma vezinha. Parece bobagem, um detalhe, mas aí é que está toda a diferença: nos detalhes, nas "bobagens" - aliás, você nunca fez pouco das minhas perguntas, angústias ou reclamações; ao contrário, sempre me incentivava a falar e perguntar sobre qualquer coisa que me afligisse ou inquietasse. E era isso que eu queria: respeito, paciência, compreensão de que sou um ser vivo, pensante, pulsante e temente.

Aliás, bota ser temente, pensante e pulsante nisso!

Cheguei até você com ideias prontas e com você aprendi a não tentar encaixá-la nas minhas pré-concepções. Antes de você, querida Dra. F., eu vivia às turras com os obstetras, porque eles radicalizavam e fincavam pé em bobagens e absurdos, e minha resposta óbvia era fincar pé do outro lado, radicalizar também, e assim começar um infrutífero cabo de guerra (que era muito mais bonito antes do novo acordo, quando ainda tinha os hífens como que desenhando o puxa-puxa). Quando você disse para mim, com todas as letras "pode parar de lutar porque você já conseguiu o que queria", isso foi como soltar a corda do cabo de guerra, me deixando estatelada do chão de minhas convicções, tendo que catar ao redor aquilo que era realmente importante e o que me pertencia de verdade. Ou seja, precisei entender que eu não encontrara uma boa adversária, mas sim a melhor parceira! Caí de bunda no chão, sim. Mas você foi lá, me deu a mão e perguntou por que eu tinha puxado a corda tão forte. Bastava conversarmos.

E conversamos.

Eu sei que você sabe disso, Dra. F., mas ainda assim eu quero muito explicitar: eu tinha muito medo do parto. Não só pela mítica imagem que a sociedade contemporânea criou em torno dos nascimentos, não só por desconhecer o que me esperava, não só por saber que doía, não só por conhecer, inclusive, muitos dos riscos que existiam (eu já discutia sobre partos, nascimentos e gravidez havia muitos e muitos anos, tipo um terço da minha vida tinha sido assim, catando e memorizando esse tipo de informação). Eu tinha muito, muito, muito mais medo do parto porque eu sabia que era minha única chance de parir.
Aliás, isso é assombrosa e paralisantemente aterrorizante: saber que o primeiro filho é sua única chance. Claro que existem VBACs, VBA2Cs, 3Cs, mas, a verdade é que o primeiro parto é a única vez que você pode viver o parto. Se você cair numa cesária logo de cara (seja ela necessária ou não), seu próximo parto será, na verdade, o espelho do seu primeiro não parto.

(Sabe, Dra. F., eu vou publicar este texto no meu blog, e espero imensamente que ninguém se ofenda com essa minha ideia, porque incomoda pensar que o que temos de mais precioso - e aqui eu tiro meu chapéu em uma respeitosíssima reverência, pois VBA(1,2,3)Cs são para aquelas fortes, guerreiras, determinadas e poderosas! - possa não ser bom por si só, mas porque tem um lado bem ruim para criar o contraponto. Mas eu realmente acho isso. Uma vez uma amiga, paciente sua também, vinda de um VBAC maravilhoso, me disse que o parto normal depois de uma cesária tinha um gostinho até melhor, porque a pessoa conseguia o que vinha querendo desde há muito. Concordo que o VBAC deve ter um gostinho especial, e que, assim como uma experiência ruim torna as conquistas boas ainda mais especiais, enfim parir depois de ter tido seu direito usurpado deve ser realmente redentor. No entanto, eu só conheço a pureza do arrebatamento do parto natural. E acho, de verdade, que meu parto existiu por ele mesmo, em termos absolutos, sem comparações dolorosas, sem traumas prévios, sem parâmetros. E isso, só as primíparas podem ter!)

Retomando o fio da meada: eu tinha muito medo de fracassar no meu parto. Quando aqui digo fracassar, quero deixar bem claro duas coisas: 1) vivam as cesarianas salvadoras de vidas, bem indicadas e feitas para garantir saúde para mãe e bebês!; 2) eu, apenas eu, posso dizer como eu me sentiria se eu passasse pela cesária depois de tanta luta por um parto natural. Isso porque eu (e você) sabia (sabíamos) que eu tinha absolutamente tudo para ter um parto natural. Ou seja, no fundo do meu coração eu sabia que meu corpo estava ali para mim, que ele seria a primeira morada e o primeiro desafio do meu filho, que ele responderia e  corresponderia às necessidades. Eu acreditava no meu parto. E isso dava um medo danado! Medo porque eu sabia (e você também!) que meu parto aconteceria 1% na minha vagina, 3% no colo do meu útero, 6% no meu útero e 90% na minha cabeça. Era da cabeça que eu tinha medo. Aliás, medo duplo, e das duas cabeças: da minha falhar e travar meu processo, empacar minha dilatação, medrar minha fisiologia e interromper o curso natural; e da cabeça do meu filho passando pela minha vagina (e, confesso, mesmo tendo parido, até hoje tenho um nervosinho medroso de pensar que a CABEÇA de um BEBÊ passa pela nossa VAGINA!). Se eu contraísse, dilatasse e travasse, minasse, roubasse de mim a possibilidade de parir, me sentiria uma frustrada.

Quero destacar uma coisa bem importante (e por isso abro este parágrafo meio sem propósito): se EU roubasse de mim mesma a possibilidade de parir. Porque eu sabia, depois das consultas sempre incentivadoras e esclarecedoras, que você não roubaria de mim a possibilidade de parir. Eu sabia que se eu fosse para a faca, não seria por conveniência de agendas e horários (ou honorários), mas por segurança. E por isso o grande medo de fracassar: porque a responsabilidade era dividida (você monitorava e via se o processo fisiológico caminhava conforme deveria; e eu encaminhava e deixava acontecer o processo), mas ao mesmo dependia apenas de mim não me roubar o direito de parir. Em outras palavras: se eu não resistisse e medrasse e travasse, não por inexplicáveis desígnios que às vezes surgem nas nossas vidas - e vias -, mas se resistisse e medrasse e travasse por não me entregar ao processo, por desconfiar de mim, por ansiar e querer mudar o compasso do tempo, aí eu fracassaria: não pela cesária somente, veja bem, porque cesária não é sinônimo de fracasso. Mas eu fracassaria em lidar com a situação. E me frustraria se eu aceitasse desculpas para não enfrentar de peito aberto o que surgisse diante de mim.

Mas eu consegui. E você me respeitou. Aliás, eu consegui também porque você me respeitou.

Cada escolha, cada decisão, cada ideia, tudo que envolveu o nascimento do ser mais amado do (meu) mundo foi conversado, respeitado e pautado no amor. No meu amor, no fruto do amor entre mim e marido, no amor que você tem pela sua profissão e pelas suas pacientes. Porque eu realmente acredito que você me ame. De verdade. As consultas não eram vazias e sépticas: elas traziam histórias minhas e suas, partilhamos momentos, eu escolhi você para estar no momento mais íntimo e importante da minha vida, e todas as vezes eu que conversamos eu sinto que você, em algum nível, me ama e se identifica comigo. Se não fosse assim, não teria funcionado, porque ambas, eu e você, só funcionamos de verdade com a verdade: não fingimos. Nem fugimos. Enfrentamos, mas sempre em parceria, porque não nos enfrentamos, mas sim aos problemas, medos e dificuldades. E isso é uma forma de amar.

Hoje, no dia do obstetra, quero dar os parabéns não só pela mera convenção das efemérides, mas porque você honra a profissão que escolheu, porque orgulha aos seus pares por respeitar e tratar ética e medicamente suas pacientes. As Marias, as Joanas, as Silvias, Lauras, Renatas, Lúcias, Mauras, Cíntias e até as mais diferentes, como as Luzitânias e Petruskas. Todas com suas histórias, seus medos, suas limitações, seus amores e vivências.

Espero que seu modelo de atendimento se espalhe. Espero que outros profissionais se inspirem em sua competência e na excelência de seu ofício. Espero que outras mulheres tenham, como eu, a chance de parir, a chance de não desperdiçarem a chance de parir, a chance de terem, nesses tempos de violência obstétrica, a experiência do amor obstétrico. Um amor de obstetra.
Um beijo meu e outro do Arthur!

Um comentário:

  1. Que lindo, Ártemis, emocionei. :-)

    Também estou ensaiando a minha carta ao obstetra (faço isso mentalmente há uns três anos), mas a minha história é mais parecida com a da Anne. E ainda não sei se estou preparada pra escreve-la.

    beijos pra vocês!

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