terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Língua

Olha, sem favor (e sem modéstia), duas coisas estão de parabéns: meu inglês e a burocracia estadunidense.
Que mês, minha gente! Existem alguns processos administrativos (normais) abertos por mim. E quando eu me lembro que reclamava da burocracia brasileira, agora eu coloco em perspectiva e vejo que é um luxo discutir sobre os meandros oficiais e oficiosos que um processo pode trilhar na língua pátria. É um luxo soletrar o nome sem pensar em cada letra (por que as vogais aqui têm nomes tão diferentes?). É puro glamour discutir sem tentar se lembrar da ordem dos adjetivos ou adjuntos adnominais em uma simples frase. Se eu fosse dona de cursinho de inglês no Brasil, faria as provas assim: por telefone, com atendentes falando bem rápido e em termos técnicos do outro lado, e você precisando anotar números e códigos enquanto conta ao interlocutor coisas bastante complexas, como o resumo do seu caso em aberto.
Números são um mistério. Uma vez uma linguista me disse que dá para ter uma boa pista da língua dominante de um falante ao pedir para ele fazer uma conta: ele vai pensar nos números na língua com a qual se sente mais confortável. Tem gente, é verdade, que não se sente confortável com números em língua nenhuma, mas ainda assim vai contar e somar ou subtrair aos trancos e barrancos da língua dominante.
Dei sorte até agora, porque as pessoas que me atenderam foram solíticas, pacientes e simpáticas. Até uma bênção eu recebi ao fim de um dos inúmeros telefonemas. Mas já lidei com atendentes modorrentos que tudo o que mais queriam era, aparentemente, fazer coro com o Trump e me mandar de volta (de preferência de bote) para meu país de origem.
Todas as vezes que passo por situações difíceis ou desafiadoras por ser imigrante, penso automaticamente em duas coisas: 1) como as pessoas que estão ilegais em países diferentes do que nasceram devem sofrer e ficar realmente à margem; 2) como as pessoas fantasiam a respeito da vida que levo aqui nos EUA.
Tem coisa boa? Claro que tem! Tem coisa linda? Óbvio que sim! Vale à pena? Bom, por enquanto está valendo e, como diria Pessoa, "tudo vale à pena quando a alma não é pequena". A alma é grande, mas a paciência e a perseverança também precisam ser imensas. Frustração é meu nome do meio, quando tento ser a mesma pessoa que sou no Brasil e não consigo. Costumo brincar que sou muito mais inteligente em português, mas é verdade: as limitações da linguagem ainda são um empecilho (será que um dia deixarão de ser? Não sei. Minha avó é imigrante, está no Brasil há mais de 40 anos, e até hoje a linguagem impõe sua cancela em certas situações). Cansaço é meu nome quando, depois de pensar em português por questões profissionais, preciso rapidamente mudar o código e me comunicar em inglês. Dá preguiça de sair de casa, dá medo de falar no guichê, dá nervoso repetir, repetir, repetir e saber que não, a pessoa do outro lado não entendeu o sotaque. E, é evidente, as dificuldades não param por aí. A língua é só a primeira de uma série de barreiras alfandegárias de uma aduana perene. A língua é o passaporte arregaçado na primeira frase, embora às vezes errem um pouco a geografia e me localizem no leste europeu. A língua é a mais óbvia e mais eficaz ferramenta de separação entre mim e eles. Entre mim e tantas coisas. Entre uma vida confortável e uma vida desafiadora.
Poderia eu dizer que só os bilíngues são felizes, mas eu tenho alma, e das grandes, então prefiro dizer que são felizes aqueles que, apesar da língua, vão contar a história. A história de se estar deslocada, em deslocamento, fora do eixo da acomodação. Espero que um dia essa seja a minha história.