terça-feira, 29 de abril de 2014

Pesadelo

Hoje eu tive um pesadelo. Nele, Arthur acordou às seis e meia da matina, tocando o terror, subindo nas coisas e numa agitação de tsunami. Nele, eu fiquei morta-viva de sono, dando cabeçada enquanto tentava entreter o menino e distrair a fera. Nele, eu arrumava tudo para irmos para a piscina às nove da manhã: fralda de banho, maiô, xampu, brinquedinhos, roupas e comidinhas. Também empurrava o carrinho, descia pela minha rua e entrava no clube. Trocava de roupa, guardava a mochila e voltava para trocar Arthur. Arthur, que, tsunâmico, arrancava meu prendedor de cabelo, que, solto, me obrigava a prendê-lo novamente, revelando, enfim, um suvaco cabeludo que passou duas semanas crescendo debaixo de casacos enquanto eu e Arthur convalescíamos de uma gripe trevas. Um suvaco cabeludo, no meio do clube, sem lâmina de barbear na bolsa (embora eu ande por aí carregando um pandeiro) e já de maiô para entrar na piscina.
Esse foi meu pesadelo.
Tipo aquele em que você sai de casa e descobre que está pelada. Ou lembra que sua festança de casamento é dali a uma hora e você não tem vestido ou maquiagem.
A única diferença foi que eu não estava dormindo. Ao contrário. Acordada desde às seis da matina, com um menino insandecido depois de dias trancafiado em casa por uma gripe e de suvaco cabeludo na piscina do clube.

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Coisas que só acontecem comigo

Estávamos dentro do vestiário do clube quando escutei o primeiro tim-tim-tim. Achei que fosse coisa da minha cabeça, achei que fossem as crianças lá fora brincando de bater em alguma coisa de metal, achei que fosse maquinário do elevador, achei que fosse qualquer coisa, essa é a verdade. Mas aí o barulho se repetiu: tim-tim-tim. E veio junto o som inconfundível para uma carioca feito eu: TUM-TUM-TUM.
Arthur olhou para mim assustado, dedinho em riste perto da orelha, como quem diz "tá ouvindo, mamãe?". Se era alucinação, então era coletiva, se é que se pode chamar de coletividade uma dupla.
Nos vestimos apressadamente, guardamos os pertences na bolsa. Seguimos o som, que crescia conforme subíamos os degraus: TUM-TUM-TUM tim-tim TUM-TUM.
Samba.
Com surdos, tamborins e caixas. Compasso ternário único, cadenciado.
Entrei na sala do ensaio e fiz a única coisa que poderia fazer naquele momento. Ou seja, saquei um pandeiro da bolsa e fiquei ali, assistindo.
Juro.
Samba, aqui. E eu tinha um pandeirinho na bolsa.
Coisas que só acontecem comigo.

terça-feira, 8 de abril de 2014

No balanço

O parquinho estava lotado. Crianças de todas as cores e idades se engalfinhavam para ver quem desceria o escorrega em espiral de costas primeiro, quem se balançaria mais alto, quem se sacolejaria nos brinquedos de mola com mais ferocidade. Crianças podem ser muito selvagens. E eu agarrei meu filho, coloquei-o sob minha asa e estendi meu firme e protetor braço para permitir que ele explorasse com segurança seu novo mundinho de menino que corre, sobe escada e desce escorrega sozinho. Sozinho, porque independente, não desacompanhado.
Duas loirinhas desciam os escorregas das crianças pequenas de costas e de cabeça para baixo, olhavam feio para mim e faziam cara de deboche para meu bebê. Um garotinho obeso que falava espanhol e estava ali com a mãe corria sem rumo, de um lado para o outro, quase esmagando as mãozinhas pequeninas do meu filho em seu afã por diversão. Uma adolescente entediada gritava nomes e vociferava ameaças enquanto deslizava o polegar na tela do telefone, os ouvidos enfiados em fones brancos. Um cachorro amarrado à árvore latia de vez em quando.
A gritaria estava me deixando exausta, e acho que em determinado momento, também chateou Arthur. Ofereci de irmos ao outro lado do parque, onde em vez de brinquedos há uma quadra de basquete e um gramado, e ele aceitou. Perguntei se queria jogar bola, retirei o brinquedo da mochila, e fomos nós para o gramado.
Meu menino jogava a bola gritando "É dois e já!", ria, pegava o brinquedo e corria. Fez isso umas dez vezes e parou. Não queria mais. Foi até a quadra, apontou o jogo dos rapazes grandes, arrancou em direção a um pai e um filho que jogavam (que clichê!) uma bola de futebol americano um para o outro, catou uma pedrinha no chão, correu mais um pouco e quis, por fim, voltar aos brinquedinhos.
Quase todas as crianças tinham ido embora, e só umas poucas ficaram ali, balançando-se preguiçosamente no frio de início de primavera ou cavando na areia com gravetos.
Arthur foi andando devagar, parando diversas vezes. Perguntei se ele queria água. Fez que sim com a cabeça. Parei no carrinho, Arthur junto, e foi então que vi a moça com o filho obeso acenando para mim do balanço. A essa hora, notei que estávamos ali somente nós duas, nossos filhos, e os rapazes que jogavam basquete na quadra mais adiante. Ela acenou mais uma vez. Agitei a mão em resposta, peguei a garrafa de água, ofereci um gole a Arthur, bebi um pouco, e fui em direção aos dois, mãe e filho.
Conforme me aproximava, distingui melhor que o que antes parecia ser uma cena de amor, com a mãe balançando o filho e de vez em quando se abaixando para falar com ele, na verdade era algo estranho. A criança chorava. A mãe sorria, embora parecesse nervosa. Pensei o que ela quereria comigo. Peguei Arthur no colo, pois que coisas estranhas despertam meu instinto de proteção da cria. O menino, no balanço, chorava lágrimas gordas, até babava um pouco, naqueles choros sentidos e nervosos em que a infância nos aprisiona às vezes. Tive pena. Tive receio. Achei que a mãe queria ir ao banheiro e, agachada ao lado do filho, tentava convencê-lo a ficar comigo durante um tempo. Olhei ao redor. Estávamos sozinhos ali. Os quatro estranhos e estrangeiros.
Ela, então, sorrindo, angustiada, veio no espanhol me explicar. Apontava para o filho, agora de cabeça baixa, e atropelava desculpas: você é a única pessoa aqui, desculpe não falar inglês, estou nervosa.
O menino, agora perto dele eu conseguia ouvir, murmurava entre lágrimas que doía. Arthur se assustou e olhou para mim, apontando o dedinho: neném.
E enfim eu compreendi, juntando as imagens e as palavras confusas da moça que me pedia ajuda. O filho dela, por ser obeso, ficou preso no balanço. As coxas gordinhas se prenderam firmemente, e ele, embora grande, não tinha coordenação motora ou mesmo força física para se içar dali. A estrutura do brinquedo comprimia seus testísculos e tudo era dor ali: a humilhação de pedir ajuda naquelas condições, a falta do inglês para se comunicar, o desconforto físico, as tentativas frustradas daquela mãe em retirá-lo sozinho da cadeirinha.
O menino, que devia ter uns 3 ou 4 anos, era pequeno, mas estava visivelmente envergonhado com toda a situação.
Pousei Arthur no chão, coloquei a garrafa de água ao lado e tentei, com todas as minhas forças e a ajuda da moça, erguer o menino do balanço. Nada.
Olhei para os lados e ainda estávamos sozinhas. Os dois cada vez mais assustados, nervosos. Imagina só ficar preso num brinquedo de parquinho com a tarde chegando ao fim!
Usei meu portunhol de colégio para explicar para a mãe que seria melhor se ele tentasse jogar o corpo para trás, mas o menino não conseguia, pois as pernas estavam muito presas e ele não tinha a angulação necessária para a manobra. Segurei por sob as axilas do garoto, puxei, empurrei, a mãe colocou-se de joelhos diante dele, para que o menino tivesse um apoio para os pés e tentasse empurrar as pernas dos buracos, mas nada adiantou. Estava preso, bem preso ali.
Arthur repetia neném, assustado, segurando o balanço vizinho, como se tentasse também ajudar.
O menino então começou a chorar com mais intensidade, angustiado, acredito eu, com a perspectiva de ficar ali. No imaginário infantil, provavelmente para sempre.
Tentamos mais algumas vezes, até que eu dei a volta e segurei o menino por sob as axilas pelas costas. Pedi que a mãe o avisasse que eu iria deitá-lo, e assim que ele ficou sabendo do que eu faria com ele, pus meu plano em prática. Com esforço e muito vagar, ele foi deitado de costas e uma das pernas se moveu um pouco. A mãe se pôs de frente para ele, ergueu suas pernas e, enquanto as empurrava, eu puxava o garoto. Aos poucos ele foi se soltando, e nem me lembro como foi que aguentei segurá-lo para que ele saísse dali. Mas ele saiu. E sorriu. E a mãe agradeceu mais do que havia se desculpado. Em espanhol, em inglês, com os olhos, com a alma.
Eu sou mãe, sei que foi muito mais difícil para ela ver o filho naquela situação do que foi para mim segurar uma criança que deveria pesar quase o mesmo que eu (eu peso 45kg).
Voltei para casa tocada pela humildade da moça, pelo desespero do menino, pela dificuldade de ser estrangeiro e não saber o mínimo da língua do país, mas, principalmente, pela certeza de que se eu tivesse permanecido distante, fingido que não tinha visto a moça acenar, pegado meu carrinho e ido embora pelo outro lado do parque, teria achado que o desespero daqueles dois era amor. Porém, às vezes, o que a distância parece carinho e cotidiano, pode ser que de perto seja, na verdade, dor e o sopro do inesperado criando novas fragilidades.
Precisamos, no ir e vir da vida, de mais sororidade.

Arthur no balanço.
PS: Obrigada pelo carinho no último post. Ainda não sei se estou de volta.