terça-feira, 20 de outubro de 2020

Voltei

 Em junho.

A mudança foi a coisa mais difícil que já fiz até agora. Não o dia em que entregamos o apartamento. Não quando entramos no avião. O processo completo.

Começou em março, com a pandemia. Eu tinha um trabalho, marido também. Arthur na escola, Gael com a gente em casa e, BUM, veio o caos. As passagens estavam compradas, já sabíamos da mudança, já era um plano. Mas a pandemia elevou tudo a novas potências.

Eu atrasei a entrega do trabalho. Marido idem. Arthur e Gael e eu e marido e o peixe trancados dentro de um apartamento de quarto e sala, longe da família, vendo as notícias das mortes, assistindo os colapsos, nos perguntando tantas coisas (e se pegarmos? e se não conseguirmos sair? será que no Brasil também veremos caixões pelas ruas? quem perto de nós vai morrer?). O trabalho nos pesava muito, porque não dávamos conta e sentíamos culpa, medo, ansiedade.

Chorei incontáveis vezes. Eu jurei que entraria em colapso. E acho que entrei. Fui diagnosticada com transtorno do estresse pós-traumático, embora eu ache que tenha sido a mistura bombástica de estresse e ansiedade.

Eu empacotei minhas coisas aos prantos. Joguei fora móveis, papéis, brinquedos, livros, roupas. Me despedi de sete anos em Chicago. Mas não uma despedida adequada: não foi possível visitar os lugares que gostaríamos, não conseguimos ver as pessoas, falar adeus para nossa rotina.

Chorei muito. Muito mesmo. De exaustão, medo, ansiedade e sofrimento por ir embora assim, meio fugida. Fugindo do vírus.

O processo durou de março até junho e nunca briguei tanto com as pessoas ao meu redor. Doía tudo: corpo e alma. Sozinha. Só nós 4 e o peixe, que foi doado porque não dava para trazer conosco. Sei lá se morreu. Não tive coragem de perguntar à nova dona. O aquário foi para outra pessoa, uma brasileira que morava perto. A bicicleta foi para o lixo, o sofá a gente vendeu para os garotos que estavam se mudando para o apartamento do lado, onde antes morava um jogador de futebol americado com mais de 2m de altura e que se desmanchava em sorrisos quando via Gael. 

Foram 11 malas despachadas, 4 malas de mão, um carrinho, uma cadeirinha de carro e duas crianças. Era muita responsabilidade para só dois adultos.

No aeroporto foi tenso. O voo foi um pesadelo, com gente sem máscara espirrando e tossindo perto de nós. A mulher na cadeira ao lado pediu para comprar uma passagem de primeira classe ali, na hora, já dentro do avião. Não tinha como. Tudo lotado, disse o comissário de bordo. Lotado. Dormi mal, arrastei todas as malas, carreguei as crianças, coloquei as crianças para dormir, alimentei. Assisti "O diabo veste Prada" - já tinha visto antes. E acho que mais um filme. Não me lembro.

Chegamos e viajamos mais, porque não ficaríamos no Rio.

Ah, que eu não me esqueça que antes disso tivemos passagem cancelada à revelia, compramos briga no guichê do aeroporto porque nos venderam as malas extras erradas e queriam que pagássemos pelo erro deles. E teve correria para fazer passaporte. E trouxemos livros da biblioteca por engano, estou devendo uma fortuna de multa porque ainda não tive tempo de parar e resolver nada. Aliás, eu estava no mercado, na vila com menos de mil habitantes onde estamos, quando tocou o telefone e era a secretária da escola, da ex-escola do Arthur perguntando se eu já sabia para onde iríamos, porque saí de lá sem saber muito bem para onde transferir meu filho. Avisei que estava no Brasil, pedi os documentos. Foi o que consegui resolver até agora.

A mudança, repito, foi muito difícil. Uma mudança internacional, com 15 malas, um carrinho, uma cadeirinha de carro, 2 crianças, no meio de uma pandemia.

Voltei. Daqui a pouco eu chego.