quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Fernando Sabino reeditado

Estava eu em casa, de pijama, em mais um dia modorrento de pré-inverno chuvoso na Bélgica. Estamos com chuva há 5 dias e teremos tempo nublado/chuvoso até dia 23, pelo menos. Então, no panorama geral, Trump tinha sido eleito presidente do país onde devo morar até 2018, Temer deu um golpe no país onde nasci e no país onde atualmente passo uma temporada estava chovendo gordas lágrimas de decepção liberal. Nesse contexto, pijama em casa era o máximo que eu conseguia administrar.
Tudo corria bem, apesar do clima 7X1-e-os-fascistas-tão-chegando, até que Arthur grita e dá um pulo:
- Uma aranha!
Onde? Não tô vendo. Ali, correu. Vi. Era uma pernalta amarronzada e estava bem na frente do meu filho. Meu filho que não admite que matemos nenhum bicho que não seja mosquito que morde. Meu filho, também de pijama, que acompanhava o caminhar elegante da aranha pelo chão da nossa sala.
Qual saída? Distrair o menino e pá!, matar a aranha? Não, o mundo não precisa de mais gente escrota, mentirosa e hipócrita. Então, fui tocando a aranha feito gado pela sala, no intuito de expulsá-la para fora de casa, pela porta da frente, em grande estilo e sem estragos. Passamos pela mesa, conduzi o aracnídeo até o hall de entrada e ali peguei a vassoura que tinha acabado de pousar quando filhote me chamou. Acendi a luz, abri a porta, com muito cuidado ia pisando com meu chinelo de oncinha para fazer um movimento forte o bastante para levar a aranha para onde eu queria, mas suave o suficiente para não machucá-la ou assustá-la demais. A vassoura seria minha aliada para conseguir pousar a bichinha em um dos degraus da escada, o plano era perfeito. Arthur me acompanhava, intrigado com o desfecho, eu ia conduzindo tudo direitinho, todo mundo feliz, a aranha subiu espontaneamente na vassoura, o que facilitaria bastante para mim, pois agora era só colocar a vassoura na escada e esperar a aranha sair andando em suas patas compridas e...
clic
Com um clique suave e quase inaudível a porta da minha casa se fechou atrás de mim.
Quarta-feira, Trump eleito, três graus e muita chuva lá fora, eu sozinha com filhote e os dois de pijama, trancados do lado de fora de casa.
Embora estivesse de calça, chinelo e casaco, me senti o próprio Claudio Marzo em "O homem nu".

Maldita aranha! (imagem daqui, ó: http://www.papodecinema.com.br/filmes/o-homem-nu)
Eu vestia calça, casaco e chinelo, mas Arthur estava descalço. Meu celular ficara do lado de dentro, assim como carteira com dinheiro ou qualquer outra coisa que pudesse me ajudar a encontrar uma solução digna para a situação.
O prédio só tem um vizinho, que não estava em casa, e nossos senhorios moram na casa ao lado. No dia anterior, para minha vergonha completa, eu já tinha tocado na casa deles e pedido que por favor abrissem a porta porque saí e larguei a chave do lado de fora da porta de casa. Então, não foi sem constrangimento que desci (depois de calçar no menino as botas que estavam do lado de fora de casa! que sorte!) e toquei a campainha. Chuva, vento, frio. Nenhuma resposta.
Voltei para dentro do prédio, sentei na escada. O que fazer? Não conheço ninguém aqui, marido ainda demoraria pelo menos mais 3h para chegar em casa, vizinho fora de casa, senhorios idem. Eu queria chorar. Eu queria fazer xixi. Conseguia escutar o som tocando dentro de casa, ver a luz do hall acesa.
Esperei.
Desci de novo. Mais um toque na campainha. Outro. Ninguém.
Voltamos para dentro do prédio porque meus dedinhos estavam começando a ficar dormentes com o vento gelado.
Sentei na escada, vi a aranha tentar escalar a parede, ajeitei a vassoura, tentei distrair Arthur.
Desci. Toquei. Nada.
Subi, me esquentei, tive uma ideia.
Desci, abri a garagem, peguei a chave do cadeado da bicicleta. Óbvio que não funcionaria, mas pelo menos iria me distrair. Quantas horas eu ficaria ali, naquele corredor? Tinha acabado de mandar uma mensagem para marido perguntando que horas ele voltaria para casa. Vejam que coincidência escrota! E antes de ver a resposta, clique.
Subi com a chave e ela nem sequer tinha a mesma espessura do buraco da fechadura, tudo que eu podia fazer era achar um ângulo qualquer e tentar criar uma espécie de alavanca para girar o tambor da fechadura. Óbvio que não funcionou.
Desci de novo. O corredor do prédio estava ficando gelado com tanto abre e fecha de porta da rua. Toquei a campainha. Nada. De novo. Nada. Arthur correndo, pulando, achando tudo uma graça (pelo menos isso!). Subi. Peguei a chave da bicicleta de novo. Tentei mais uma vez. Desisti e achei que se McGyver conseguia consertar um jato com chiclete e um chumaço de algodão, talvez eu conseguisse abrir a porta da minha casa desfazendo o aro que ligava a chave da bicicleta ao chaveiro. Desfiz o aro. Enfiei o arame dentro do buraco da fechadura e tentei todas as combinações possíveis de posição do arame + força na porta + chave da bicicleta formando uma espécie de alavanca. Não funcionou, é claro.
Desci de novo. O vizinho do outro lado chegava em casa, perguntei as horas, quatro e dez, lascou-se, acho que talvez seja bom pensar em ir ao mercado daqui a pouco porque lá tem aquecimento e está ficando frio, mas se eu for ao mercado, marido pode voltar para casa e ter um pequeno surto ao encontrar tudo aceso, som ligado e nós desaparecidos, melhor ficar aqui, mas marido só deve chegar lá pelas seis e meia, o que faço, Arthur, desce daí, meu filho. Respira.
Toquei a campainha. Nada. Quis chorar. Pensei onde eu poderia fazer xixi nas redondezas, mas aqui não é os EUA e nenhum estabelecimento comercial tem banheiro para clientes. E eu nem seria uma cliente, já que não tinha dinheiro para consumir.
Subi. Arthur canta com a vassoura. Arthur dança com a vassoura. Arthur quer saber da aranha. Tento, insistente e inutilmente, abrir a porta com o arame e a chave que não entra na fechadura. Desisto. Sento no degrau.
Ouço um barulho.
Desço.
Serão os senhorios? Será o vizinho? Será um delírio?
Não! Era meu próprio marido, ensopado, com as mãos duras de tanto frio e o olhar atônito de quem achou, por alguns segundos, que a mulher estava saindo de casa de pijama e chinelo. Ele veio mais cedo para casa, mal posso crer!
Ficamos uma hora e seis minutos trancados do lado de fora. E, ainda assim, quando entrei em casa, o Trump ainda estava eleito.
Que tempos, minha gente. Que tempos!

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Sobre estar aqui

Quase todas as pessoas para quem eu conto que estou passando um tempo na Bélgica comentam comigos coisas do tipo "nossa, quem me dera!" ou "ah, que máximo!" ou "um sonho! uma maravilha!". E emendam com um "aproveite!".
Não chega a me irritar, mas acho curioso como as pessoas têm uma ideia completamente equivocada do que significa, na vida real, morar fora, sobretudo em um lugar temporário.
Se eu tivesse grana, a história toda seria diferente, porque eu poderia viajar e passear e curtir a ideia de "morar na Europa" que as pessoas têm. Mas como não tenho grana e a pouca que tenho está comprometida com coisas supérfluas, tipo pagar um teto e comer, então morar fora significa mesmo é passar perrengue em outras línguas e com as quatro estações do ano bem marcadas.
Também não estou reclamando. Nem posso. Mesmo com os perrengues é uma coisa incrível estar aqui, ver e viver coisas que eu nunca veria ou viveria no Brasil (para o bem e para o mal), perceber que estou começando a pescar uma ou outra palavra em holandês (palavras escritas, que fique bem claro, porque para as faladas eu precisaria de mais uns cinco anos aqui), comer chocolate bom todos os dias e beber cerveja famosa pagando bem menos.
Acho que estou desabafando, aqui, no meu cantinho, porque quando as pessoas me respondem, com os olhinhos brilhando, noooooooossa, que beleza morar na Bélgica, eu não posso e nem quero falar que é muito chato e deprimente ficar em um lugar onde só chove, ou que me sinto frustrada por ver meu filho sem conseguir se comunicar com as outras crianças porque as línguas não são compatíveis, ou que tem dias que me cansa pedalar e trepidar nos paralelepípedos das ruas centenárias da cidade só para ir até o centro ver gente e não deprimir, ou que a rotina avança nos dias mesmo falando holandês, ou que cuidar do pequeno 24h por dia não me deixa espaço (interno) para organizar outras coisas da minha vida, ou que estar com as malas já lotadas e não poder comprar materiais e brinquedos para distrair uma criança que não consegue brincar com outras crianças e que passa muitos dias enfiada dentro de casa porque lá fora está chovendo e fazendo 5 graus é mais do que frustrante, é exasperante!
Às vezes sinto como se eu subaproveitasse a oportunidade, mas não vejo muitas soluções, sinceramente. Ao menos, não vejo soluções que caibam no meu orçamento ou na gincana na qual parece que entramos em 2011 e da qual nunca saímos. Viajar não é uma possibilidade. Passear, comer fora, conhecer restaurantes e museus, tudo isso custa dinheiro (euros, não se esqueçam) e não é exatamente recebido com gritinhos de alegria pelo meu bólido.
Estar aqui é ótimo, mas muitas vezes se parece com estar em qualquer outro lugar do mundo. Sou grata pela oportunidade, mas não é raro que eu precise dar um sorriso amarelo ou uma resposta educada para as pessoas que vibram com a minha estada aqui, como se morar na Bélgica de repente sanasse todos os problemas do mundo e solucionasse boa parte das angústias medíocres que vivo. Estar aqui não é passear aqui, não é estar de férias aqui, não é apreciar tudo o que a Bélgica tem de melhor a nos oferecer. Estar aqui é ser estrangeira, e continuar sem grana, e ter rotina (sobretudo com e por causa do pequeno), e fazer supermercado com meia dúzia de frutas disponíveis, e lavar roupa (na máquina dentro de casa. LUXO!), cozinhar (blergh!), lavar privada, varrer chão, arrumar entretenimento, arrumar tempo para não deixar a peteca cair, se lembrar de que acabou o guardanapo e o café, é saber que em poucos dias estaremos empacotando tudo de novo, entrando num avião de novo, indo de novo para mais uma temporada temporária em outro país.
Estar aqui é fazer o estar aqui fazer sentido, enquanto estamos aqui. Faz sentido nossos passeios bestas para não pirar, faz sentido nossas tradições recém-inventadas, faz sentido abrirmos as exceções que abrimos e mantermos o que mantivemos. Estar aqui é, de verdade, estar aqui. A cada segundo. Sem espaço para idealizações. E isso é legal na mesma medida que é difícil. Estar.