Uma voz metalizada, que não sei se gravada ou se apenas mecanicamente anunciante, repetia pelos buraquinhos: A ajuda está a caminho! A ajuda está a caminho! Mantenha a calma. E eu e marido nos entreolhávamos enquanto Arthur, ciente de que apertara o botão errado, fazia cara de "mas o que raios está acontecendo aqui?".
Bom, se você também esta se fazendo essa pergunta, deixe-me voltar umas horas nesse mesmo dia, para que as coisas fiquem mais claras (e dramáticas).
Eu ando sobrecarregada. Literal e metaforicamente: carrinho, bolsas, Arthur, casacos, cuidar da casa, do menino, dos frilas e da vida. Não sou a única: marido também anda na correria e na intensa agitação de seu novo ambiente de trabalho, de sua nova realidade de interação e das muitas descobertas. O único que parece em paz é Arthur. Por um lado, ótimo, pois um bebê estressado no contexto que vivemos atualmente seria muito complicado. No entanto, por outro lado, haja energia e disposição! E quem fica em casa a maioria das horas segurando o rojão é a mamãe aqui!
Bom, dito isso, um belo dia, quando eu estava prestes a me jogar da janela e quebrar o tornozelo (estamos hospedados num apartamento que fica no segundo andar), prestes a zunir com o prato de papinha e em vias de destruir a marteladas (do martelo de amaciar carne – Olá, vida doméstica!) os brinquedinhos sonoros que Arthur brinca de remixar num looping insistente, marido achou que, para o bem da saúde familiar, deveríamos dar uma voltinha para espairecer.
Eu, precisada de relaxar e curtir a vida de solteira, fui para a noitada... não, não... isso foi um sonho. O que aconteceu mesmo foi: saímos em família, rumo a um parque aqui perto.
Arthur até pareceu animado no carrinho (aqui, adotamos o carrinho, pois mesmo em libras, Arthur está pesado), apontando para a porta da rua, dando carinhosos tapinhas em sua girafa companheira e gritinhos estridentes de excitação. Eu deveria saber que gritinhos de excitação significavam, dããã, excitação. Mas o estresse embotou minha mente e eu saí. Gente: eu saí!
No elevador, as coisas pareciam bem, e assim foram até atravessarmos a primeira rua. Arthur então esticou os bracinhos, semicerrou os olhinhos e pediu colo. Marido entrou em ação, mas não valia: tinha de ser o meu, porque no meu colinho ele tem peitinho. E então, a menos de dez metros de casa, o menino abaixou minha blusa, afastou meu sutiã e se acoplou a mim. No exato momento em que isso acontecia, vinha vindo uma família muçulmana, com todas as mulheres cobertas dos pés a cabeça em panos, lenços e vestes. Arthur, claro, soltou o peitinho na mesma hora, que ficou ali, tomando uma brisa fresca, para escandalizar a todos os religiosos diante de nós. Ali estava a cidade de contrastes: uma desenxabida latina, peito nu, cabelo ao vento (a essa altura, depois de tentar conter as ânsias e desejos do filhote, meu tradicional coque tinha ido para o beleléu e mechas nada charmosas voavam ao sabor da "brisa" nada suave que varre a cidade); do outro lado uma penca de mulheres sem qualquer trecho de pele aparente. Inclusive a que carregava um bebê um pouco mais velho que Arthur.
Céus! Eu deveria ter parado. Era um aviso divino: volte para casa, entoque-se. Mas o que eu fiz? O quê? Puxei a blusa, usando Arthur para encobrir a peitola assanhada, e apontei: olha, filho, um ônibus! E assim distraí o moleque por um quarteirão inteirinho: olha o carro, olha o trem, olha o ônibus, a bicicleta, o pedestre, o passarinho, o pombo, o coelho (sim, aqui temos coelhos nas ruas! Vomitem arco-íris de fofura!), a menina...
Acontece que chega uma hora em que acaba a brincadeira, pois ou já não temos mais tantas coisas novas para mostrar e elas se repetem, ou a paciência do rebento já foi para as cucuias e você precisa encontrar outra coisa para ele se entreter.
Mas foi tipo amor: eterno enquanto durou. Eterno por um minuto e treze segundos.
Ainda nos faltavam uns quarteirões.
O que fazer?
E do oriente veio a resposta: uma família fofa de orientais vinha na direção contrária, e Arthur se engraçou com os pequenos. Um casal de irmãos (ou primos, essa coisa de olho puxado às vezes me confunde) tão bonitinhos! Arthur parou, sorriu, dançou, bateu palminha, deu tchau. Todos riram, bateram palminhas, deram tchau, fizeram "aahhhhs" e "oohhhhhs" e "uuuhhhhs" para todas as gracinhas perfeitamente executadas de meu filho. Enternecida, pensei: que molequinho fofo eu pari! Mas então compreendi: ali, na mão de cada um dos mini-orientais, repousava uma bolinha macia e colorida. Os olhinhos nada puxados de meu filho se abriram ainda mais diante daquela visão, e suas gracinhas tinham objetivo bem definido: conquistar a Ásia, destruir o exército azul e tomar ao menos uma bolinha macia e colorida. A estratégia dele parecia boa, pois a criança mais velha, o desavisado menininho, num arroubo de ternura graças às investidas de meu filho, cedeu-lhe o objeto redondo.
Arthur provou sua maciez, analisou suas cores vibrantes, experimentou com cada um dos sentidos seu objeto de desejo. Rimos, achamos fofo, engraçadinho, até que a família mandou o "hora de dizer tchau para o amiguinho" e o menininho fofo (não meu filho, como vocês verão a seguir) quis a bola de volta. Meu filho, nada fofo, abraçou a bolinha, fez que não com a cabeça e começou a andar para longe da família. Eu fui tentar pegar a bola, mas não consegui. Arthur chorou, esperneou, segurou a bola como se ali estivesse depositada sua vida (ou suas melhores lembranças, tipo Harry Potter). Marido também tentou, mas Arthur anda rápido, sagaz e continua bem menor que a gente, então escapuliu por entre as pernas do pai, praticamente dando um drible no progenitor. A essa altura, a família oriental fofa já estava de sacos orientais cheios e, não sei se por conta da disciplina rígida com que educava seus filhos, se por piedade de nós ou ainda se por mera falta de saco para esperar o desfecho de nossas investidas, falaram numa língua incompreensível, e nos deram tchau. Na base do choro, conseguimos reaver a bola do menininho, que já se afastava com o olhar dos espoliados, e recebemos um não veemente quando fomos entregar o objeto. O pai disse que poderíamos ficar com a bola, enquanto o restante da família já ia longe. Ficamos sem ação, com a bola (Arthur, notando nosso embasbaque, rapidamente se reapropriou da pelota), nos entreolhando feito babacas. A família oriental fofa se afastando (agora, rememorando, seria isso uma fuga dos bárbaros? Eu já tinha meu peitinho guardado na roupa, mas certamente nossas atitudes para com Arthur pareciam as de pais a beira de um colapso: risos nervosos, demora para agir e antecipar problemas... enfim, como eu disse, às vezes fico confusa e não consigo interpretar muito bem pessoas de olhos puxados). A bola da discórdia ali, entre nós, a vergonha nos engolfando, diferenças culturais rodopiando em nossa mente, a barreira das línguas... marido veio com a solução num rápido "olha, filho, é um esquilo ali?" (sim, vomitem mais arco-íris: aqui temos esquilinhos fofos correndo pelos gramados bem-aparados). Arthur afrouxou o aperto na bolinha, tomei-a de sua mão, o choro nem se formou, pois um esquilo (santo esquilo!) saltou de uma árvore para o chão, arrancando de meu filho um "iiihhhhhhh", com o dedinho em riste e uma carinha de surpresa.
Bola macia e colorida na mão, corri para onde havia visto a família desaparecer alguns minutos antes: ninguém. Coitado do orientalzinho fofo e bem-educado. Tive vontade de chorar: um pouco pela descompensação causada pelo estresse, outro tanto porque realmente é de cortar o coração ver uma criança abrindo mão na base da disciplina de alguma coisa de que não precisava abrir mão (ao menos não a meu ver). Dei uma corridinha de barata, ou melhor, de esquilo assustado, e... BINGO! O pai da família estava sozinho dentro de uma loja, vendo (que clichê!) câmeras fotográficas. Entrei esbaforida, mal me lembrando das palavras em inglês que deveria usar, e mandei num balbuciante "the book is on the table" meu "muito obrigada, meu filho não quer mais a bolinha". Porra, não era isso que eu deveria dizer! Mas saiu assim e consertar, àquela altura, com o oriental-pai já meio assustado (eu estava descabelada, esbaforida e falando feito uma bárbara), poderia ser um desastre que nem o Itamaraty consertaria. Paguei de latina mal-educada, maluca e boçal, cujo filho só devolve a bolinha porque "enjoou". Foda-se. Fiz uma mesura japonesa, abaixando-me até mais ou menos a linha da cintura, pensei que o japonesinho ia ficar feliz e voltei para perto do marido, que já tinha encontrado uns cachorros (um deles chamado Tequila!) para distrair o moleque. Marido perguntou " e aí?", contei o que fiz, o que pensei e que fui embora e... "Ártemis, é sério que você fez um cumprimento japonês?!!". Sim, era sério. Marido quis saber como eu sabia que eles eram japoneses em vez de, sei lá, chineses, coreanos, vietnamitas. Eu não sabia. E fiquei passada, pensando que eu realmente fico confusa com olhos puxados.
Bom, a essa altura da narrativa você já deve estar cansada(o). Eu estava. E ainda não chegáramos ao parque!
Vamos em frente, então. Arthur estava passando a mão na Tequila, feliz da vida, sem bolinha, sem mamar, as coisas pareciam fluir. Retomamos o fôlego e reassumimos a missão.
Chegamos ao parque, enfim.
Coelhinhos, esquilinhos, passarinhos... ah, a vida é bela. Oh, a vida é linda! Ei, onde está o Arthur? Não sei...
Ele estava bem: sentado em frente a uma família loira, dando tchauzinho para o caçula.
Pensei: oh, céus, de novo, não! Eles, obviamente, não são americanos (falavam em uma língua desconhecida para mim). O que será que Arthur viu e quer?
A princípio, não era nada. Estava mesmo só sendo fofo e gracioso. Danou a dar tchauzinho, ia e voltava na família, explorava o parque e mandava tchau, corria um pouco e sorria para eles. Fofo. Até que o pai da família resolveu fazer uma boquinha. Pensei: ótimo, Arthur tá fazendo greve de fome, não vai comer nada, e eu trouxe frutas frescas, frutas secas, leitinho de amêndoa, biscoitinho de arroz integral, frango... ele não vai querer comer. Rá!
Pois é: ele se convidou para o piquenique e, depois de eu contar que ele estava numa greve de fome por conta do processo de adaptação (a família era polonesa e entendia bem dessas coisas, pois também era imigrante), ele comeu: dois morangos de Itu (sério: GIGANTES), três framboesas, duas blueberries, torrada e ainda quis lamber a rolha do champanhe (imigrantes chiques! Vocês tinham de ver o piquenique deles! Alta produção.). Ficamos sem graça. sobretudo com o grand finale do champanhe, e achamos que era hora de partir. Demos tchau, obrigada por alimentarem meu pequeno flagelado, nos vemos um dia e, então, o pai da família nos alcança um cartão de visitas: caso precisem um dia, explicou.
Ele era advogado. Especializado em processos de imigração.
Genial!
O caminho de volta foi no mesmo estilo da ida: peitinho exposto, estresse, "olha lá, vai pegar a guimba de cigarro do chão", "não, Arthur, não lambe o poste", "cadê o ônibus?", "vai no carrinho/no chão/no colo do papai um pouquinho, meu amor". E enfim chegamos no prédio!
Ufa!
Que aventura, tô exausta, eu também, vamos comer o quê?, não sei, amor, cuidado: ele vai apertar o botão de emergênciaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa...
Pois é, foi assim que terminamos dentro de um elevador, com uma voz metalizada nos mandando ficar calmos que a ajuda estava a caminho, um olhando para a cara do outro, pensando: e agora?
Poderia dizer que marido precisou me arrastar para fora do elevador, pois a promessa de receber ajuda era tentadora, mas a verdade era que Arthur, a essa altura, já estava dentro de casa, tentando enfiar o dedinho gorducho na tomada, se empenhando em entrar sozinho na banheira (de cabeça), querendo fazer da sola do meu sapato seu mordedor. Então, não tive outra escolha se não abandonar a oferta de ajuda e ir fechar bem a janela para não cair em tentação, porque fazer tudo isso com o tornozelo enfaixado seria a morte de qualquer vestígio de sanidade.
Um beijo, Brasil!
* Esta postagem é um oferecimento do Pret-à-Manger, um café orgânico que prepara deliciosos cappuccinos de leite de soja para que eu possa aguentar o rojão diário. E também é uma compilação de todas as peraltices que filhote já aprontou por aqui.
Ufa, pelo menos vocês chegaram e casa sãos e salvos!
ResponderExcluirRi horrores aqui imaginando as cenas (desculpa, mas eu ri kkkk)!
Beijo
Todo mundo que tem filho já passou por essa da criança querer comer TUDo o que os outros estão comendo na rua, então relaxa..rsrsrs
ResponderExcluirAgora a bolinha do japonezinho foi f...hein!!! Toda criança tbém apronta dessas, mas a gente sempre fica morrendo de vergonha da educação ou melhor "falta de" deles..rsrsrs
Agora sério que eles tinham espumante no piquenique?? Menina que coisa de outro mundo!!!rsrsrs
bjos
Coelhinho na rua, esquilinho passando, espumante no parque... ai, ai, ai... parece sonho! kkkk Aí o pequeno Arthur pega para sempre a bolinha do bebê oriental e vc o cumprimenta no melhor estilo "arigatô" (rolou uma inclinadinha???) e ainda passa por mãe-ocidental-que-deixa-bebê-mandar... aí sim eu vi que era vida materna real mesmo! bjo!
ResponderExcluirEu passo por tudo isso no Brasil, imagina em um país estranho...
ResponderExcluirNossa, querida, boa sorte...Mas pelo menos o Arthue pelo jeito é um fofo e esta rendendo ótimos posts rs
Beijos