Querem ver?
A clínica é bonita. Novíssima. Cheguei no dia da inauguração (sorte minha, vocês já vão ver por quê). Fui resolver um pepino, mas aproveitei para solicitar uma consulta médica para o pequeno, já que desde que saímos do Brasil ele não passava por um exame. O dia estava frio, nublado, clínica recém-inaugurada, muita gente ainda pregando espelho na parede, encerando chão, aplicando revestimento na laminação da madeira, essas coisas que o destino nos dá de presente de vez em quando e que permitem que a gente receba a pergunta: "quer ser atendida hoje, agora?"
Opa! Claro!
Sentei-me, respondi um formulário gigantesco, que de tão grande, completo e complexo, não acharia estranho se perguntassem para qual time a gente torce, qual era a cor da minha calcinha ou com quantos paus se faz uma canoa. Bom, eu disse que eu me sentei para responder a esse interrogatório? Sentei-me nada! Fiquei correndo atrás do Arthur, prancheta em riste: casos de reumatismo na família? Hum, aquele tio-avó da minha prima era reumatismo ou... Arthur, desce daí! Diabetes tipo 2? Acho que sim, mas... Arthur, volta aqui, não corre para o estacionamento.
Coisa delícia, coisa simples, coisa que acontece diariamente.
Daí que essa coisa de corre-escreve-pensa-traduz-lembra-fala-para-o-moleque-descer-da-cadeira-mostra-passaporte levou uns bons quarenta minutos. E eu já estava por ali, na clínica, resolvendo a tal pendência anterior, há mais de duas horas. Então, a manhã já se encaminhava para seu fim quando terminei a avaliação prévia e fui chamada para ser atendida.
A enfermeira mediu temperatura, pesou, mediu e aumentou o aquecimento da sala, já que Arthur estava só de fraldinha, esperando a médica.
Que veio logo atrás de sua barriga: 39 semanas. Mas parecia bem, sabem? Eu fui uma grávida de 39 semanas digna de piedade, com minha falta de ar e barriga imensamente pesada. Mal me aguentava de pé. Mas a Dra. Rebecca estava graciosa em seu vestido vermelho de cintura imperial, jaqueta jeans e fita domando o cabelo cacheado. Bonita. Sem falta de ar.
Sorriu e perguntou: o que lhe traz aqui?
Assim, na lata.
Em inglês.
Por ter apenas obedecido às ordens da enfermeira que veio primeiro, e por ter passado uns cinco minutos na sala de exames tentando domar a ferinha só de fralda que tentava apertar todos os botões ali existentes, nem me lembrava mais de que teria que expor, em inglês, o que me afligia em relação a meu filho. Sem contar a anamnese feita na língua de Shakespeare! Como responder até mesmo o trivial, tipo peso? Sei lá a conversão entre quilos e libras de cabeça! Deveria ter me preparado.
Mas não me preparei. Fiquei correndo atrás do filhote de prancheta na mão, bolsa no ombro e passaporte no bolso. E, além disso, quem poderia imaginar ir resolver pendência burocrática e acabar de frente com uma médica grávida que lhe pergunta sem preâmbulos: o que lhe traz aqui?
Eu, que li o conto sabinesco trocentas vezes, me aferrei ao fato de que, na área biomédica, muitos termos são equivalentes em português e inglês porque, afinal, vêm do latim. Puxei na memória o latim tosco que tenho (cof, cof, cof!), caprichei no sotaque e fui. Até porque já estava na hora do almoço, Arthur e eu ficando com fome, e eu queria ir para casa logo.
Deixei a coisa fluir. Vacina. Peso. Altura. Angústias. Sonhos. Necessidades. Desejos. Até que me saí bem, sobretudo se considerarmos o meu nível de latim (amor, amore, amoribus).
Mas então aconteceu.
A médica, grávida de 39 semanas, perguntou se eu ainda amamentava. E se eu fazia cama compartilhada.
Sugeriu o desmame noturno. Questionei. Ela perguntou se eu estava feliz assim, acordando até 4 vezes na madrugada boladona. Sim, estou. Cansada, mas feliz. Ela disse, ok, então continue, e emendou, em algum momento da consulta, que mamar a toda hora parecia um "estilo de vida para ele" e que ele claramente me fazia de chupeta. Que faça! É assim que estamos felizes, principalmente em meio a todas as grandes mudanças por que passamos.
Veio então a cama compartilhada. Ela veio com o discurso ensaiado e eu só respondi: conheço os riscos. Ela foi bacana, não insistiu muito, apenas sugeriu graciosamente que colocássemos o colchão no chão. Já está, respondi. Está no chão porque perdemos uma trave de metal que sustenta o estrado, pensei. E nossa cama do colchão vagabundo está aqui, no chão, semi-montada, compartilhada por toda a família.
Ela também quis saber dos dentes, da alimentação, das vacinas (quis muito saber das vacinas) e do desenvolvimento. Respondi, crente que estava abafando. Até que a consulta, longa, minuciosa, já entrando tarde adentro, encaminhou-se para o fim. Arthur já dormindo atrelado ao peito, só de fraldinha (e lá fora fazendo 7 graus). Perguntou se eu tinha mais alguma dúvida. Tinha. Como explicar que tenho medo de Arthur fazer fimose? Bom, usei o método confuso de explicação, com gestos, palavras que não eram exatas para a situação, mas que funcionavam lindamente na metáfora e arrisquei: segurei na mão de Fernando Sabino e mandei o meu "limpar o esmegma". O rosto dela se iluminou: sim, sim, sim! Esmegma. Ela conhecia a palavra, entendeu toda minha encenação anterior e falou uma porção de coisas sobre o assunto. Compreendi metade, a outra metade começou a ficar confusa, perdida entre apitos e estrelinhas brilhantes e, por fim, eu compreendi. Não o que ela disse, mas que eu não estava entendendo patavinas do esmegma e da fimose porque eu estava... tchanã... desmaiando de fome.
Pausa dramática.
EU. ESTAVA. DESMAIANDO. DE. FOME.
Fazer o quê? A única coisa que me restava: olha, Dra. Rebecca, negócio é o seguinte. Quando fico muito tempo sem comer, e eu não esperava ter esta consulta, ser atendida tão rapidamente, eu desmaio. E é o que estou fazendo bem agora. Por acaso, assim, de repente, vocês teriam uma cafeteria, lanchonete ou mesmo máquina de refrigerante por aqui? Não, não tinha. Mas era meu dia de sorte, lembram? Inauguração da clínica. Havia um convescote na sala de reuniões. Bagels, batatinhas fritas, bolinhos, muffins. Um mundo de leite e manteiga para arruinar minha dieta APLV. Mas que remédio? Desmaiar a dez quadras de casa com um bebê de dezesseis meses no colo? Ganhei, feito mendiga, um bagel de alho, um muffin de mirtilo e um saco de batatinhas fritas. Arthur dormiu, tasquei no carrinho, e fui arrastando tudo: carrinho, Arthur, minha dignidade ferida e o bagel, que rolou no meio do estacionamento quando eu fui segurar a receita médica que o vento tentou levar.
Segurei a receita. Lamentei o bagel agora esmigalhado por uma roda. E li.
Phimosis.
Fimosis, minha gente!
É Fernando Sabino, mirei no esmegma, acertei na fimose, e voltei para casa com a certeza de que, na literatura, nada se perde, e muito me diverte.
Adoro teus posts! Imagino as cenas e dou risada, me emociono! Adoro!
ResponderExcluirE viva a cama compartilhada, as mamadas noturnas!
Beijo
kkkkkk! Esse post está muito bom! Demais!!!
ResponderExcluirAí os pediatras também continuam falando no mesmo tom de voz enquanto vc tenta controlar a criança??? Como se nada estivesse acontecendo ao redor? Porque confesso que isso e em inglês eu não dava conta!
Agora vou dar um google aqui e ler a tal crônica de Fernando Sabino.
bjo!
Adorei a descrição, só queria ver uma fotinho da raposa!!!
ResponderExcluirÉ impossível não achar graça, cara! haha
ResponderExcluirEra uma simples visita ao médico, só isso, mas com vocês vira uma aventura! ♥
Agora me pego pensando se, na falta de um latim decente, eu me pegaria inserindo alguns pequenos e inofensivos palavrões em português mesmo. Bem provavel... oO
Seria cômico se não fosse trágico né?!?
ResponderExcluirSabe que também compartilho dessa angústia?!?! O Joaquim é um sério candidato a operar a fimose, a pediatra sempre me tranquiliza, pois diz que como ele consegue fazer xixi normalmente, não teve nenhuma infecção urinária, pode ser que após os 2 anos, quando pode-se usar a tal pomada milagrosa, o pinto dê o ar da graça, se não der teremos que partir para a cirurgia, enquanto isso eu espero e rezo para a tal pomada fazer o milagre mesmo!