Eu queria pôr a culpa na língua.
"O quê? Isso? Não, não. Não foi isso que eu disse. Vocês se confundiram."
Eu queria poder colocar a culpa na minha incapacidade de dizer não.
"Ah, eu fiquei tão sem-graça de negar, sabe? Ela disse com tanto jeitinho."
Eu queria até culpar Arthur.
"Sabe, foi ele que quis muito, quis tanto, é importante para ele."
Mas a verdade é que fui eu que quis e precisei e desejei e disse sim. Um sim consciente. Tá, de repente não tão consciente assim, porque sempre tem umas surpresas na vida que a gente não prevê nas mirabolâncias do nosso pensamento.
E se alguém pode ser considerado culpado pela presença de Lola nas nossas vidas, esse alguém sou eu!
Lola: peludinha, fofinha, meio vesga, uma porquinha-da-índia. Ela mora na sala de aula do Arthur e não tinha com quem ficar nas férias de inverno. E eu me candidatei ao cargo de guinea pig sitter. Babá de porquinha-da-índia.
Ela veio na gaiola, de carona na mala do carro de uma das mães que tem carro. Eu não tenho carro. Mas agora eu tenho Lola. Que mastiga alface, cenoura, couve, espinafre, maçã e outras gostosuras vegetais. Lola, tímida, arredia e assustada. No fundo da gaiola. Dentro da casinha. Escapando só para comer, beber e ver Arthur. Eles parecem gostar um do outro. Eu que não gostei. Não da Lola, óbvio. Eu não gostei foi do que aprendi com ela aqui.
A gaiola fica aberta quase que o tempo todo. Ela é livre dentro dessa miniprisão chamada apartamento. Pode entrar e sair, pode correr, se esconder, guinchar e até roer os pés dos móveis. Ela pode vir se aninhar no meu colo, ou no do Arthur, ou no do marido. Mas ela não: fica só lá dentro de seu mundinho conhecido, como se aprisionada pelas portas da domesticação. Portas imaginárias, portas irreais que a confinam em um espaço solitário e isolado. Vamos até ela, fazemos-lhe festinhas, no entanto ela fica ali. Recebe o que oferecemos com desconfiança, arredia e assustada. Nunca sai e fica ali, bebendo sua aguinha, comendo suas folhinhas, vendo a vida listrada através das barras da gaiola.
E eu pensei que tem muita Lola na minha vida.
Lolas humanas.
Lolas que culpam portas que não existem de fracassos ou limitações que, exatamente como a minha decisão de ficar com Lola durante as férias de inverno, são fruto das decisões tomadas livre e espontaneamente. As portas imaginárias confinam e a culpa nunca é de quem decide. O cosmos, a vida, o azar, o destino, Deus ou até mesmo outras pessoas, essas filhas da mãe que cruzam o nosso caminho. A pessoa é mero barquinho de papel no tsunami da vida: sem controle, sem arrimo, sem vela ou direção.
Mesmo no inverno, não quero ser uma Lola. Porque o mais triste de ser Lola não é ficar limitada dentro de jaulas imaginárias, nem viver a vida pacata do ócio e do tédio, mas sim não ter consciência de tudo isso. Tomar decisões conscientes, para mim, é a verdadeira liberdade. Não que dê para pensar em todas as possibilidades de fracasso que as escolhas possam acarretar, mas aceitar e não colocar a culpa em outro ou no que vai fora, ah, esse é o segredo. Trazer para si as responsabilidades e liberdades. Eu escolho, eu assumo, eu aguento, eu faço.
Enquanto isso, a portinhola da gaiola está aberta. E Lola ali dentro, os olhos olhando para a ponta do nariz, é um lembrete constante de que é preciso coragem para se viver em liberdade.
AMEI esse texto, Ártemis querida!
ResponderExcluir<3 ;)
Beijo grande!
Adorei a reflexao!
ResponderExcluirBjs,
Lu
www.enricovemai.blogspot.com.br
Adorei! Deixo pra você um carinho em forma de poesia:
ResponderExcluirPorquinho-da-Índia (Manuel Bandeira)
Quando eu tinha seis anos
Ganhei um porquinho-da-índia.
Que dor de coração me dava
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
Levava ele prá sala
Pra os lugares mais bonitos mais limpinhos
Ele não gostava:
Queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas...
- O meu porquinho-da-índia foi minha primeira namorada.