terça-feira, 8 de abril de 2014

No balanço

O parquinho estava lotado. Crianças de todas as cores e idades se engalfinhavam para ver quem desceria o escorrega em espiral de costas primeiro, quem se balançaria mais alto, quem se sacolejaria nos brinquedos de mola com mais ferocidade. Crianças podem ser muito selvagens. E eu agarrei meu filho, coloquei-o sob minha asa e estendi meu firme e protetor braço para permitir que ele explorasse com segurança seu novo mundinho de menino que corre, sobe escada e desce escorrega sozinho. Sozinho, porque independente, não desacompanhado.
Duas loirinhas desciam os escorregas das crianças pequenas de costas e de cabeça para baixo, olhavam feio para mim e faziam cara de deboche para meu bebê. Um garotinho obeso que falava espanhol e estava ali com a mãe corria sem rumo, de um lado para o outro, quase esmagando as mãozinhas pequeninas do meu filho em seu afã por diversão. Uma adolescente entediada gritava nomes e vociferava ameaças enquanto deslizava o polegar na tela do telefone, os ouvidos enfiados em fones brancos. Um cachorro amarrado à árvore latia de vez em quando.
A gritaria estava me deixando exausta, e acho que em determinado momento, também chateou Arthur. Ofereci de irmos ao outro lado do parque, onde em vez de brinquedos há uma quadra de basquete e um gramado, e ele aceitou. Perguntei se queria jogar bola, retirei o brinquedo da mochila, e fomos nós para o gramado.
Meu menino jogava a bola gritando "É dois e já!", ria, pegava o brinquedo e corria. Fez isso umas dez vezes e parou. Não queria mais. Foi até a quadra, apontou o jogo dos rapazes grandes, arrancou em direção a um pai e um filho que jogavam (que clichê!) uma bola de futebol americano um para o outro, catou uma pedrinha no chão, correu mais um pouco e quis, por fim, voltar aos brinquedinhos.
Quase todas as crianças tinham ido embora, e só umas poucas ficaram ali, balançando-se preguiçosamente no frio de início de primavera ou cavando na areia com gravetos.
Arthur foi andando devagar, parando diversas vezes. Perguntei se ele queria água. Fez que sim com a cabeça. Parei no carrinho, Arthur junto, e foi então que vi a moça com o filho obeso acenando para mim do balanço. A essa hora, notei que estávamos ali somente nós duas, nossos filhos, e os rapazes que jogavam basquete na quadra mais adiante. Ela acenou mais uma vez. Agitei a mão em resposta, peguei a garrafa de água, ofereci um gole a Arthur, bebi um pouco, e fui em direção aos dois, mãe e filho.
Conforme me aproximava, distingui melhor que o que antes parecia ser uma cena de amor, com a mãe balançando o filho e de vez em quando se abaixando para falar com ele, na verdade era algo estranho. A criança chorava. A mãe sorria, embora parecesse nervosa. Pensei o que ela quereria comigo. Peguei Arthur no colo, pois que coisas estranhas despertam meu instinto de proteção da cria. O menino, no balanço, chorava lágrimas gordas, até babava um pouco, naqueles choros sentidos e nervosos em que a infância nos aprisiona às vezes. Tive pena. Tive receio. Achei que a mãe queria ir ao banheiro e, agachada ao lado do filho, tentava convencê-lo a ficar comigo durante um tempo. Olhei ao redor. Estávamos sozinhos ali. Os quatro estranhos e estrangeiros.
Ela, então, sorrindo, angustiada, veio no espanhol me explicar. Apontava para o filho, agora de cabeça baixa, e atropelava desculpas: você é a única pessoa aqui, desculpe não falar inglês, estou nervosa.
O menino, agora perto dele eu conseguia ouvir, murmurava entre lágrimas que doía. Arthur se assustou e olhou para mim, apontando o dedinho: neném.
E enfim eu compreendi, juntando as imagens e as palavras confusas da moça que me pedia ajuda. O filho dela, por ser obeso, ficou preso no balanço. As coxas gordinhas se prenderam firmemente, e ele, embora grande, não tinha coordenação motora ou mesmo força física para se içar dali. A estrutura do brinquedo comprimia seus testísculos e tudo era dor ali: a humilhação de pedir ajuda naquelas condições, a falta do inglês para se comunicar, o desconforto físico, as tentativas frustradas daquela mãe em retirá-lo sozinho da cadeirinha.
O menino, que devia ter uns 3 ou 4 anos, era pequeno, mas estava visivelmente envergonhado com toda a situação.
Pousei Arthur no chão, coloquei a garrafa de água ao lado e tentei, com todas as minhas forças e a ajuda da moça, erguer o menino do balanço. Nada.
Olhei para os lados e ainda estávamos sozinhas. Os dois cada vez mais assustados, nervosos. Imagina só ficar preso num brinquedo de parquinho com a tarde chegando ao fim!
Usei meu portunhol de colégio para explicar para a mãe que seria melhor se ele tentasse jogar o corpo para trás, mas o menino não conseguia, pois as pernas estavam muito presas e ele não tinha a angulação necessária para a manobra. Segurei por sob as axilas do garoto, puxei, empurrei, a mãe colocou-se de joelhos diante dele, para que o menino tivesse um apoio para os pés e tentasse empurrar as pernas dos buracos, mas nada adiantou. Estava preso, bem preso ali.
Arthur repetia neném, assustado, segurando o balanço vizinho, como se tentasse também ajudar.
O menino então começou a chorar com mais intensidade, angustiado, acredito eu, com a perspectiva de ficar ali. No imaginário infantil, provavelmente para sempre.
Tentamos mais algumas vezes, até que eu dei a volta e segurei o menino por sob as axilas pelas costas. Pedi que a mãe o avisasse que eu iria deitá-lo, e assim que ele ficou sabendo do que eu faria com ele, pus meu plano em prática. Com esforço e muito vagar, ele foi deitado de costas e uma das pernas se moveu um pouco. A mãe se pôs de frente para ele, ergueu suas pernas e, enquanto as empurrava, eu puxava o garoto. Aos poucos ele foi se soltando, e nem me lembro como foi que aguentei segurá-lo para que ele saísse dali. Mas ele saiu. E sorriu. E a mãe agradeceu mais do que havia se desculpado. Em espanhol, em inglês, com os olhos, com a alma.
Eu sou mãe, sei que foi muito mais difícil para ela ver o filho naquela situação do que foi para mim segurar uma criança que deveria pesar quase o mesmo que eu (eu peso 45kg).
Voltei para casa tocada pela humildade da moça, pelo desespero do menino, pela dificuldade de ser estrangeiro e não saber o mínimo da língua do país, mas, principalmente, pela certeza de que se eu tivesse permanecido distante, fingido que não tinha visto a moça acenar, pegado meu carrinho e ido embora pelo outro lado do parque, teria achado que o desespero daqueles dois era amor. Porém, às vezes, o que a distância parece carinho e cotidiano, pode ser que de perto seja, na verdade, dor e o sopro do inesperado criando novas fragilidades.
Precisamos, no ir e vir da vida, de mais sororidade.

Arthur no balanço.
PS: Obrigada pelo carinho no último post. Ainda não sei se estou de volta.

5 comentários:

  1. Poxa, que triste a situação! Mas que bom que você estava lá e que bom que você veio desabafar conosco! Beijos!

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  2. Que dor no coração viu!!
    Feliz por ler vc novamente!

    Arthur grandão!!!

    bjo

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  3. Ártemis, que delícia te ler!! Ainda bem q tudo acabou bem! Fiquei emocionada com o relato e foi vc quem me ensinou a palavra sororidade, há algum tempo. Beijo!

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  4. Aquele nó na garganta, sabe?
    O final é para promover muita reflexão, muito mais do que pode parecer.
    Você é ótima! <3

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  5. Morri de rir com o post mais recente. E um minuto depois estou com um nó na garganta. Pela situação toda. :'(

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