quinta-feira, 8 de agosto de 2019

A ferida

Eu tinha poucos anos, não sei dizer com exatidão, mas foi depois da minhas mortes e antes das minhas vidas. Eu usava um triciclo e corria feliz, naquele clichê de infância com vento no cabelo e despreocupação. Fui fazer uma curva e caí. Rolei. Parei na parte de areia antes da água e levantei já sentindo o cotovelo arder.
Não lembro se chorei. Nem como voltei para casa. 
À casa, que não era minha porque depois das minhas mortes eu não tive mais nada, limpei como tinham me ensinado: água, sabão e álcool. Queria pôr um curativo, porque cotovelo costuma chegar primeiro a muitos lugares — mesa, roupa, pessoa ao lado, colchão —, mas se sobrepuseram a casa que não era minha, sem minha gente, e a história perversa que se disseminou na minha infância de que eu não doía. Por isso, fiquei sem curativo, à mercê da cicatrização natural para diminuir minha dor.
Todos os dias eu passava água oxigenada, para não causar infeção. E seguia de perto a transformação de carne viva, rósea e dorida em crosta. No começo eram raios avermelhados. Depois de alguns dias escureceram, adensaram e ao fim mudaram para uma casca marrom e grossa. 
Ainda doía, só que de um jeito diferente.
Tive muito cuidado ali naquele lugar. Era sozinha e uma inflamação era arriscado.
Fui evitando raspar o cotovelo no cotidiano, segui os rituais de cura que pareceram lógicos e que doeram menos e em algum tempo caiu a casca e ficou uma cicatriz. Está aqui até hoje. 
*
Sozinha, naquele quarto de hospital, nasceu  em mim uma outra ferida. 
Ninguém veio ver Gael. Nem a mim. Rostos estranhos entravam, saíam e nunca voltavam. Eu era um número, um protocolo, um prontuário.
Nenhum amigo ligou. Nem mandou flores. Ou presentes. Ninguém correu para ver o ascendente ou fazer o mapa astral do Gael.
Eu contei que estava passando por um mau momento, que foi um parto intenso, mas as pessoas seguiram em conversas paralelas. Ninguém fez chamada de vídeo. Ou mandou comida para minha casa. Ninguém fez um texto bonito para o meu filho. Tão perfeito. Tão incrível.
Ele nasceu e tudo roçava nessa solidão horrorosa e doloridíssima.
De novo eu não estava em casa. As pessoas seguem descrendo de minha dor. Não houve curativo e há oito meses venho acompanhando com cuidado e interesse a ferida. Todos os dias passo unguentos e em alguns poucos dias tentei usar lágrimas. Parece que tem um ponto que está inflamado, mas sem pus ninguém me leva a sério. A distância também não ajuda: já tentou enxergar estando longe em cerca doze horas de voo? Tudo vira ficção. Você imagina tanto, completa muitas lacunas, tantas, aliás, que tem mais das coisas imaginadas que das experimentadas ou testemunhadas.
Todos os dias doem e sigo sozinha. Não vejo ainda estrias avermelhadas em meio à carne viva. Todos os dias eu busco a cura, a cicatrização. Mas a ferida está em área que chega antes em qualquer lugar.

6 comentários:

  1. Você é incrível, forte e corajosa! Entendo seu sentimento, apenas creia que mais dia, menos dia, essa ferida cicatrizará! E apenas ficará a marca e lembrará que doeu, que houve um processo e processo as vezes demoram e não são fáceis, apenas olhe para os lados, para outro lugar e desvie seu pensamento desta ferida, você nunca está sozinha, Deus cuida de você em todo tempo e instante.
    Se precisar, receba meu abraço, é de longe, eu sei, mais creio que Deus nesse momento pode ir até ai e fazer isso por mim :)

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  2. Poxa, eu sempre leio seu blog e sempre penso em comentar, mas sou dessas leitoras silenciosas... fiquei muito tocada com seu relato. Já tinha ficado no post do nascimento do Gael, pelo qual esperei ansiosa. Mas hoje, enxergando sua ferida, não pude deixar de registrar meu abraço, meu carinho, meu pensamento positivo. Sabe, eu estou na minha 4ª gravidez e sempre é tão sensível, mas que bom que amadurecemos. Se no primeiro filho ficamos ariscas, resistente ao que chamamos de "pitacos", incomodadas com visitas, depois, com o tempo, aceitamos o amor. E se esse amor - que pode vir de formas tão obtusas, de vez em quanto - nos falta, percebemos como ele é essencial. É a presença que nos une. Temo por um futuro cada vez mais isolado para as mães, de solidão. Quem já a vivenciou talvez compreenda que esse abandono é tão triste quanto os excessos.

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    1. Ah, comente mais. :)
      Obrigada pelo apoio carinhoso! 💕

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  3. Que texto lindo, sensível e honesto!!
    Eu sei que o carinho virtual não substitui um abraço de verdade, uma conversa em volta de uma mesa com cheiro de café e bolo recém saído do forno, mas eu deixo o meu aqui assim mesmo.

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