quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Mãe não é tudo igual

Nenhum discurso é neutro. Não se iluda: cada palavra proferida carrega uma ordem, uma visão de mundo, um recorte e valores. Podemos até escolher nossas frases e falas de maneira inconsciente, mas isso não quer dizer que elas sejam neutras ou descompromissadas com um viés político. Mesmo que você odeie política, seu discurso é quase uma entidade autônoma, anunciando com doze mil megafones o seu posicionamento político frente ao mundo.
Dito isto, preciso comentar os cartazes que andaram bombando na internet por esses dias.
Se você não sabe do que estou falando, não vou colocar um link, porque isso faria com que os tais cartazes tivessem ainda mais visualizações, do que, sinceramente, nosso mundo não precisa.
Pois bem, a primeira vez que vi foi quando uma amiga de Facebook postou o link, rindo-se horrores das falas sempre repetidas das mães. Depois veio outra. E mais outra. Todas com ensino superior completo, duas com mestrado até.
Depois a coisa se espalhou num crescente tedioso (todo viral é meio tedioso, já que você vê a mesma postagem umas doze vezes no dia). E todo mundo rindo, achando graça, compartilhando com as mãaes: olha aí, progenitora, o que você me falava!
Pois eu digo que eu achei terrível!
Além de feios, os cartazes servem a um propósito absolutamente apavorante e, de quebra, testemunham como as diretrizes da educação na minha realidade (classe média carioca, zona sul maravilha) não poderiam, como de fato não o fizeram, construir seres humanos mais humanos, engajados, críticos e empáticos.
O hedonismo da coisa começa na estética. O projeto é a esteticização de frases que ouvimos (sim, eu ouvi) das nossas mães. Quando você torna a coisa estética, você insere ela em outros valores. Então, além das palavras, temos nos tais cartazes o discurso reforçado pelos elementos visuais, que, em consonância com os padrões vigentes, nos dizem: olhem, tudo o que nos é dito pelas mães é uma regra, um mandamento lindo e maravilhoso de se ter como referência. Sim, porque é nisso que as tais imagens se constróem, referências. Quando se quiser, a partir de agora, reproduzir os discursos maternos ali estampados, a preferência vai ser pelos cartazes, porque além de estéticos (e afinados, como disse, com a estética vigente), eles são práticos, e se espalham com o simples clique num botão.
Aliás, o botão compartilhar do Facebook merecia um post a parte, mas vou poupar os meus parcos leitores dessa ladainha crítica e continuar com a digressão sobre os tais cartazes (ciente de que não se trata, porém, de menos ladainha crítica. Mas aqui o espaço é democrático e fica quem quer ler).
As peças são, ao mesmo tempo, chocantes, tristes e curiosos. Curiosos porque desde a essência captam valores embrenhados na nossa cultura. Poderiam ser oito, ou quinze, mas são dez, como os mandamentos da religião mais seguida (ainda é?) no Brasil. Eis, então, que isso já sacraliza o discurso, o que se confirma, ainda, com o fato de serem falas maternas, e não parentais. Ou seja, reforça-se o estereótipo da mãe como figura sagrada, indelével e perfeita. E isso, minha gente, esmaga o feminino, achatando-o numa categoria plana (mães são todas iguais), estanque (ai daquela que ousar sair do padrão!) e machista. Mãe, dez mandamentos e falas sacralizadas. A coisa está ficando feia, e você aí ainda rindo no Facebook.
Mas como eu disse, os cartazes não são apenas curiosos, também são tristes e chocantes. Tristes porque a esteticização da disciplina autoritária serve para reforçar o modelo, e para fazer deles leves e aceitáveis, do tipo que se pendurados na parede da sala não fariam feio com as visitas. E como modelos, referenciam e, pior, não questionam a ordem vigente. São, portanto, retrógrados. E são ainda chocantes, pois denunciam que tanta gente foi criada nessa disciplina opressora, arrogante, sacralizante e agressiva (engole o choro???) e, de quebra, acabaram por me mostrar como tanta gente inteligente do meu Facebook postou sem questionar a mensagem por trás da brincadeira.

5 comentários:

  1. Nossa super concordo contigo. Não compartilhei porque não gosto de compartilhar qq besteirinha que vejo na net, mas não tinha parado para analisar mais profundamente isso. Mas, ó só pra constar já arrumei briga com uma professora que postou uma frase que andou circulando no face que falava que era melhor o filho apanhar em casa do que na rua...aff é o fim do mundo. bjos

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    1. Nossa, lamentável uma professora defender a agressão física de uma criança. Que bom que você não deixou por isso mesmo, pois assim há esperança de reflexão e, quem sabe, mudança de pensamento e atitude.
      :-)

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  2. Vi isso ontem compartilhado por algumas pessoas. Qdo li o primeiro (justamente o "engole o choro"), nem me dei ao trabalho de ver os demais. Concordo absolutamente com você. E sabe o que acha mais triste? Esse tipo de discurso ser endossado, repetido, irrefletidamente, por gente que sofreu essa violência quando pequena. Vi uma prima minha que apanhava horrores --e sofria horrores com isso, a ponto de, no começo da adolescência, começar a revidar os tapas da mãe (imagina o que sente uma menina de 12, 13 anos que bate na mãe pra se defender!)-- postar memes defendendo que se bata em filhos como forma de "educar". Me entristeci tanto qdo vi isso da prima, que chorei. Triste.

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    1. Concordo: muito triste que sua prima ache certo reproduzir o modelo sofrível que aprendeu. Não me lembro exatamente das palavras, mas Paulo Freire tem uma frase que diz mais ou menos que se não existe uma educação libertadora, o sonho do oprimidomido é ser o opressor.
      Beijos

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  3. Ártemis,

    li o seu post e não tenho a menor noção de que cartaz é esse!

    E isso me deixou feliz e reforçou ainda mais minha convicção de que fiz um grande negócio em deletar minha conta no facebook (estou limpa há cerca de 10 dias. kkk). Chateações como essa (e milhares de outras) que não fazem mais parte da minha rotina. ;-)

    Vamos ver até quando dura...

    Beijos pra você. E olha, nem inventa essa história de parar de escrever, pliz! Eu sou uma das sem-vergonha que passa por aqui e não deixa notícia. Mas tô sempre lendo, viu?

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